1
Ela
foi até à cama e sacudiu o homem que dormia entre os lençóis
enxovalhados:
–
Acorda,
acorda! – disse a mulher, enganchando-lhe os dedos no pulso.
Ele
abriu os olhos e fitou-a mudo, como se ainda sonhasse, acabando por
dizer, com a língua entaramelada:
–
Que
se passa? – perguntou. – Que raio é isto?
–
Não
sei – respondeu ela. – Não sei nada. Estiveste aí muito tempo
sem acordar, mas não sei dizer ao certo por quantos dias. Já não
me lembro. Desde que aconteceu aquilo… parece que não voltou a
anoitecer. Os dias deixaram de ser normais. Não sei explicar. O ar
perdeu a transparência a que estávamos habituados. Tenho saudades
da noite, da escuridão, da visão das estrelas, da crista das ondas
ao luar. Enquanto estiveste a dormir, perdi a noção das horas e do
tempo. Não me perguntes como porque não sei. Não sei nada. Vai à
janela e olha.
–
Mas
o relógio está a funcionar… – argumentou ele.
–
Pois
está. Mas como podemos saber se a hora que marca corresponde à
noite ou ao dia? Estas tardes são quentes e moles…
–
Não
comeces! Há qualquer coisa de diferente em ti. Não pareces a mesma
pessoa. Olha-me, por favor: dá a impressão de que estamos
soterrados, apesar de nunca escurecer completamente.
Dirigindo-se
a uma das janelas, ele acrescentou que, vista dali, a cidade parecia
estar dentro de uma gruta enorme e perguntou, em voz alta, como se
falasse para alguém no exterior, em que estado se encontrava o resto
do mundo.
–
Será
que é desta que tudo vai acabar? – continuou, agora em voz quase
inaudível para os seus botões. – Sim…, talvez seja mesmo desta
que as coisas se vão resolver.
–
Lá
estás tu a exagerar – replicou ela. – Nem sabemos o que se
passa. O sol tem aparecido, embora raramente, e está sempre pálido,
muito pálido, quando aparece agora sobre a cidade. Às vezes,
ponho-me mesmo a pensar se aquela esfera luminosa não será a Lua,
mas logo a seguir percebo que se trata do Sol. Já não sei a quantas
ando. Apesar de enfraquecido, aquilo só pode ser o Sol, caso
contrário não se justificaria este calor sufocante. Sinto o corpo
derreter e o juízo fugindo para outros sítios.
O
homem deu uma volta à casa,
certificando-se da posição dos objectos, da sua resistência à
nova situação que então se vivia. Olhou de novo pela janela:
aquilo era uma tempestade, um estado do tempo, sem sombra de dúvida.
Mas, estranhamente, havia calma, muita calma, lá por fora. A poeira
levantara-se e ficara assim no ar como se fazendo escárnio das
casas, ruas e jardins. O dia tinha a cor do cobre, dando a ideia de
que o Sol se desintegrara à hora do crepúsculo, misturando as suas
partículas com a respiração agitada da Terra. Tudo estava
envolvido por uma névoa de ferrugem e chocolate. O calor pairava no
quarto como uma massa sólida, ondulante, invisível, derretendo-se à
medida que se passava por entre as coisas.
Ardendo,
o homem levou as mãos à cabeça, rasgou o
pijama, mas nem por isso transpirava. O calor parecia vindo de uma
fogueira que seca e suga as reservas de água do corpo mole, deixando
em desespero o pensamento. O dia tornara-se uma espécie de sempre
crepúsculo, mas sem as cores vivas e berrantes dos verdadeiros
crepúsculos.
Todos
os objectos na casa mantinham as suas posições iniciais, salvo uns
leves desvios, tombos, sobressaltos, que o
homem corrigiu. Depois, abriu a porta de um dos quartos – gostava
de lhe chamar o quarto das sombras – e viu lá dentro as coisas
deformadas, reflexos móveis, entontecidos, ligeiramente ondulantes,
mas fixos, porque, afinal, nunca mudavam de sítio. Há anos que
aquela porta não se abria. Olhando-a, agora, ele não conseguia
evitar uma singular e profunda sensação de vómito. Sentia a
garganta apertada e pancadas secas desabando-lhe no cérebro, como o
martelo agredindo umas solas na oficina da memória.
…Do
princípio de tudo, ele recordava-se de um grande clarão, fazendo
lembrar o disparo de uma câmara gigantesca, que fulminara a cidade,
as casas, o pensamento. Um clarão silencioso, que abalara paredes,
telhados, consciências, objectos que repentinamente mexiam como se
tivessem vida própria. Ele perdera a noção das coisas. Agora, dava
voltas ao miolo procurando entender o que se passara.
Não
sabia quanto tempo havia decorrido. Mas decorrera tempo, com certeza,
porque a mulher lhe dissera que ele se deixara dormir,
interminavelmente, como uma onda imóvel, entre os lençóis.
2
Mireu
foi certificar-se se o relógio estava a funcionar correctamente, não
fosse dar-se o caso de o pêndulo estar assim a balouçar para lá e
para cá só para troçar dele, agora que era sempre de dia e sempre
calor. Olhando para o relógio, cujo pêndulo parecia uma borboleta
metálica repetindo a mesma rota sem fadiga, ele distinguiu um vulto
reflectido no vidro do mostrador. Era Terrez que acabara de entrar.
Antes
da catástrofe, Terrez costumava visitá-los
de madrugada, antes do nascer do sol, por isso, e partindo do
princípio de que o velho não perdera os seus hábitos, naquele
momento devia ser madrugada.
Terrez
pôs-se a acenar jovialmente, como de costume, a fim de chamar a
atenção para a sua entrada, não fossem pensar que se tratava de
outra pessoa. Depois, Terrez desatou a balançar o corpo no sentido
oposto ao do pêndulo do relógio e Mireu coçou a cabeça quente
como um torresmo.
–
Sou
eu – disse Terrez, enquanto se aproximava do relógio, sem esconder
a sua intenção de deter o pêndulo: agarrou a haste fina com uma
mão e com a outra pôs-se a acenar, de novo, mas desta vez na
direcção do relógio, pôs-se a acenar como alguém que vai de
viagem e não se cansa de abanar o lenço no cais. Terrez parou mesmo
o relógio e sentenciou:
–
Já
não precisam disto. Agora, mais vale não saberem nada, mais vale
não terem noção das horas…
Sem
o tic-tac do relógio, dava a ideia de a casa ter ficado a flutuar de
repente num estranho vazio, um vazio que queimava, devorando as
têmporas.
Terrez
estendeu as mãos para Mireu, parecendo aumentar de estatura
ridiculamente, e disse:
–
Como
vão esses ossos, meu caro? Estás doente? Nunca te vi com tanta
falta de cor. Não me digas que Arueta anda a exigir demasiado de
ti!... De qualquer modo, não tenho dúvidas de que é uma excelente
pessoa. Sou capaz de pôr as mãos no fogo por ela.
Descuidadamente,
Terrez sentou-se no sofá que se encontrava a pouco menos de um metro
e continuou:
–
Tenho
muitos amigos, amigos de todas as idades e feitios… Não te rias,
Mireu, estou a sério. Livra, que calor está nesta casa, até parece
que estamos numa farra daquelas que eu cá sei. Não seria má ideia,
diga-se. Estás a ver aonde quero chegar? – perguntava com os olhos
em busca de Arueta. – Se pensam que estou doido, enganam-se
redondamente – afirmava, martelando as palavras. – Fumo que nem
um tresloucado, é certo. Não é por nada. É que certo dia descobri
que o fumo era o meu melhor amigo e de então para cá habituei-me a
pensar a vida e as coisas em diálogo com ele. Antes falar com o fumo
do que falar sozinho. O pior que me poderia acontecer era não ter
ninguém com quem trocar umas ideias. No meio de toda esta situação
é fundamental termos alguém como interlocutor. Que idade me dás,
Mireu? Não faças essa cara. Estou perto dos noventa, pois estou.
Mas ninguém diz. Para se manter a juventude, é importante olhar de
frente as vidraças, as janelas, todas as superfícies transparentes
que nos permitem ver as coisas limpas e puras. Quando digo alguma
asneira, receio que a vidraça se solte dos caixilhos e rebente com
violência contra os meus tutanos. Foi assim que fui ganhando juízo.
Rodeei-me dos amigos certos, podes ter a certeza. Mas, voltando ao
fumo, quero dizer-te que não é só o fumo, esse amigo que sobe ao
céu em forma de espirais como um preguiçoso. Há mais, podes crer.
Chupo no cigarro que me consolo. O tipo da tabacaria já sabe: quando
me vê entrar, traz logo três macinhos, sem eu lhe pedir nada. Assim
é que é, pianinho, e depois escapo-me sem ninguém dar por isso.
Vejo que estás alterado, Mireu. Estás excitado. Vou-me já embora.
Mas, olha, não te esqueças disto que te vou dizer: os lençóis são
uns grandes amigos meus! Muitas vezes, nem consigo dormir porque se
estão sempre a meter comigo, não me deixam um minuto sossegado,
andamos no derriço durante toda a noite. Já reparaste nas minhas
camisas? Todos os dias visto camisas diferentes, camisas lavadas e de
cores berrantes. Gosto delas frescas, apalpando-me todo, fazendo-me
cócegas, dizendo-me segredos. Ora, Mireu, qualquer dia fartas-te de
Arueta e entras na minha onda. Não uso cuecas. As cuecas apertam-me
os testículos, retorcem-mos todos. Gosto é das calças, que são as
minhas amigas preferidas. Quando me sinto deslizar por dentro delas,
imagino que estou nu naquele momento e uma mulher com calças iguais
às minhas se encosta toda aqui ao velho. Ela é que está vestida,
Mireu, eu estou nu, e então levanto logo! Uma autêntica maravilha.
Já alguma vez fizeste a experiência? As calças são amigas
óptimas, os tapetes, os talheres, os pratos, enfim, amigos lá da
cozinha, mas amigos de verdade, amigos que nunca nos deixam mal. Sou
amigo dos meus dentes postiços, mas confesso que não gosto muito
quando estou a dar à língua numa senhora e eles me saltam fora do
lugar. Fico embaraçado, claro, não vá a mulher notar alguma coisa
e ficar ainda mais embaraçada do que eu. Então, mando os dentes
postiços de novo para o lugar. Já imaginaste o problema que seria
se eu deixasse ir os dentes por ali dentro?! Seria lixado, depois,
ver parir uma dentadura. Pior ainda seria eu ter de assumir a
responsabilidade pela educação dela. É que não deve ser nada
fácil orientar uma dentadura neste mundo. Ah, vou já sair, Mireu,
mas deixa-me falar-te da Jane. Nunca fui para a cama com ela. A Jane
é só uma companhia para as refeições. Ela olha-me nos olhos, ri,
endireita o cabelo e comprime os lábios…, com aquele ar de quem me
compreende melhor do que ninguém. Já notei que espera alguma coisa
de mim, mas estou na fase de me fazer caro. Quero que ela se prenda,
primeiro. Depois, veremos. Mas tenho a certeza de que não vai
falhar. A Jane há-de tornar-se um ás na cama. Jane é uma cadeira.
Já te deves ter apercebido do estilo de amigos com quem me dou. Nada
de confusões. Trouxe Jane de Nova Iorque e nunca me arrependi. Com
todos os diabos, Mireu, este calor está de matar. Sabes o que me
apetece nestas alturas? O frigorífico, o frigorífico é um amigo
especial e refrescante. Ponho-me dentro dele, claro, e percebo que a
experiência nem sequer lhe desagrada. Até fica agradecido. Noto-lhe
um ar feliz como se tivesse um filho no ventre. A vida é finória,
Mireu. A vida é gozadona, a vida é verdadeiramente minha amiga.
Aprendi isto em criança quando andava de rabo ao léu por aqui e por
ali. Sei que estou a ser chato e que nada do que digo faz muito
sentido. Mas já me conheces. Tenho fama de louco e digo estas coisas
pela boca fora. Queres ir deitar-te com Arueta e eu estou aqui que
nunca mais me calo. Pronto, até logo.
Terrez
deu meia volta, não sem antes ter dado um empurrão no pêndulo do
relógio e mesmo à beira de sair a porta, voltou-se para Mireu:
–
Experimenta
fazer umas cócegas no clítoris da pasta de dentes! Vais ver que é
uma sensação levada da breca. Nunca pensei. A fulana derrete-se
toda que nem uma gata. Só lhe falta mesmo gemer. Vês como não me
faltam amigos e mulheres com quem me divirto à brava?
Terrez
acenou com uma mão, depois com a outra em sentido contrário,
parecendo que acabara de accionar dois pêndulos em desacordo. Mireu
acompanhou o seu reflexo no mostrador das horas, só desviando os
olhos quando Terrez se perdeu no eco empoeirado da cidade apodrecida.
3
Mireu
notou que tinha os pés a inchar. Esfregou-os contra o tapete de
corda, que tinha um aspecto de abandono e ardume, como escovas de
arame derramadas pelo corpo, fazendo desaguar a tristeza nas formas
ásperas e geométricas que se lhe colavam aos pés inchados,
enquanto as fibras de corda cediam sob a pressão da pele esticada.
Mireu
abstraiu-se de si próprio e pousou o olhar na mesa à sua frente, um
móvel frágil de cana, com borbulhas vistosas em distâncias
incertas. Para lá da mesa, umas pantufas velhas, esbranquiçadas de
lama e suor. Apoiou o pé direito sobre o outro e transportou
maquinalmente a visão da mesa de cana para as sombras que o
candeeiro projectava para além do tempo dentro de casa.
Desde
que o dia era sempre dia e a terra parara a sua marcha à hora do
crepúsculo, Arueta e Mireu desvelavam-se em cuidados para que não
lhes faltasse a luz do candeeiro. Era como se imaginassem a noite
ausente nos reflexos alaranjados da lâmpada eléctrica sobre as
coisas.
À
esquerda de Mireu, estava Arueta nua da
cintura para cima, sentada, com uma perna encolhida, a outra
balouçando sobre o abismo que ia da cadeira ao tapete.
Entre
as coxas de Arueta e o assento, havia uma linha escura, como o traço
firme de um lápis de carvão.
Sobre
uma estante de livros, encontrava-se um aquário dentro do qual três
peixes vagueavam à procura do infinito. Os peixes dobravam os
corpos, mansamente, e, subindo, deixavam-se ficar suspensos pelas
bocas na superfície da água, deitando ao mundo olhares nos quais se
adivinhava a dor das flautas e das harmónicas. As suas escamas
brilhavam ao calor e a luz do candeeiro escoava-se na ondulação do
líquido amarelado.
Lá
fora, a cor barrenta dos dias prolongava-se numa
infindável serpente em que cada um dos anéis era como os dias
sempre iguais no calendário. Dias aureolados de poeira, calor e
silêncio.
Na
cidade, as sombras multiplicavam-se de casa
em casa, rua em rua, portas, janelas, canteiros, jardins, parques
agora imersos na monotonia repentina que os clarões geram ao
entardecer.
Privilegiada
pelo calmo crepúsculo agitado, a casa de Arueta
e Mireu repousava de janelas fechadas numa transversal apagada da
cidade.
A
porta da casa era um quase borrão e nas janelas os vidros pareciam
olhar espantados por entre a poeira grávida. Do pátio para a porta,
sobrepunham-se cinco degraus de madeira, rangendo uns sobre os
outros. Em frente à escada enegrecida, havia um automóvel amarelo,
alaranjado de velhice, com desordenadas manchas metalizadas
cobrindo-lhe a ferrugem (a inevitável doença dos corpos cedendo à
humidade, ao trabalho esgotante de percorrer as estradas, arrancar,
travar, obedecer às curvas) e com os quatro pneus vazios enrugados
pela falta de ar, espremidos sob o peso da carroçaria teimosa em
resistir à idade. O tejadilho sucumbira aos pulos e danças dos
rapazes em outros tempos, ouvindo-se então os batuques, os sons,
ritmos de pernas e guinchos no pátio, à mistura com o cantar dos
grilos.
O
automóvel finou-se ali no dia em que a
tempestade rebentou e fazia agora lembrar um laranjal encolhido,
cujos frutos tinham virado pequenas manchas de prata e ferrugem,
desde as noites em que as estrelas brilhavam e contavam histórias às
crianças sobre a cidade.
Mireu
levantou-se. Despiu as calças e atirou-as para as costas da cadeira
de vimes, ouvindo-se o tilintar de moedas nos bolsos da ganga
enxovalhada. Ao receber o que Mireu lhe atirara, a cadeira pareceu
mudar de feição, como alguém que subitamente e por vergonha olha
em todas as direcções, inclinando depois a cabeça invisível para
a frente, a fim de mirar a almofada que tinha no regaço ou o bico
erecto do próprio seio.
Mireu
teve a nítida sensação de observar um leve, suave, quase indizível
rubor na face da cadeira de vimes que, nessa altura exacta, pareceu
fechar os olhos, como numa íntima aceitação de um prazer
repentino.
Nas
costas da cadeira, entrelaçavam-se os vimes, sobrepunham-se,
chocavam-se, perdiam-se em rumos certos, previstos, como os dias
reduzidos a números no vazio do mundo.
4
Junto
ao sofá, de riscas pretas e brancas, cresceu uma árvore dentro de
casa, num vaso estrategicamente colocado perto da janela.
Ao longo do tempo, com método e paciência, irrompeu pela terra,
levantando ligeira nuvens de pó, que se haviam de ir juntar àquelas
que a tempestade semeara.
Com
ramos secos, mas firmes e vibrantes, a árvore cresceu envolta num
silêncio aflito e perturbador, como se não pudesse descansar
enquanto não atingisse o limite. Parou quando as folhas e os ramos
mais altos tocaram o tecto ressequido da casa.
Havia
ocasiões em que a árvore parecia de vidro, como se para evitar que
a tarde de chumbo explodisse nos seus ramos.
Um
dia, estava Arueta a descansar reclinada no
sofá, quando entrou pela casa dentro um homem baixo, de cerrada
barba negra e pele muito branca. Antes que alguém lhe pudesse dizer
alguma coisa, escondeu-se atrás da árvore e poucos segundos após
deu um salto em frente, perguntando:
–
Já
reparaste no meu presente? Esta árvore cresceu aqui porque todos os
dias me dou ao trabalho de a regar para ti. É uma forma de estar
contigo. Acredito que não estavas à espera de me ver. Se calhar,
pensaste que eu me tinha perdido na tempestade. Será que, no fundo,
preferes que eu desapareça? Serei assim tão incómodo? Dá a
impressão de viveres como se eu não existisse. Não podes adiar a
verdade eternamente. De certa forma, creio que andas a esconder o que
sentes. Mas até quando o farás? Até quando terei que esperar pelo
fim da tua indecisão? Não seria mais interessante assumires o que
sentes? Há tanto tempo que me vejo obrigado a esconder os meus
sentimentos, só para não colidir com a tua vida. Às vezes, penso
que sou mesmo um fantasma, à espera de que me procures, à espera de
que dês com os meus olhos a piscar por entre este nevoeiro de pó
que nos caiu em cima. Dei todas as voltas possíveis e imaginárias à
cabeça pensando em algo que te fizesse feliz. Descobri que podia ser
uma árvore, esta árvore, que fiz crescer, mesmo em condições
adversas. Julguei que adivinharias as minhas intenções e que te
sentirias impressionada pelo meu poder. Há anos que procuro mil e um
caminhos para chegar a ti, sempre em vão. Mas, agora, agora que
chegámos a um ponto em que não sabemos quanto mais tempo teremos de
vida, pensei que, ao veres-me, te lançarias ao meu pescoço e me
cobririas de beijos. Afinal, estás muda como um desenho. Como sempre
estiveste. Que mais hei-de fazer para te possuir?
–
Continuas
a ser uma criança – replicou Arueta, ao fim de um tempo. – O que
tu queres é arreliar-me, Artujo. Como chegaste aqui? Realmente,
pensei que não voltaríamos a ver-nos.
–
Venho
salvar-te – disse Artujo. – Venho arrancar-te ao perigo deste
calor, deste sei lá… Se vieres comigo, levamos também a árvore.
Não quero que te sintas só. Arrisquei a pele por ti de uma forma
que já ninguém faz. Venci todos os obstáculos, todos os medos,
todas as perseguições. Vamos para outro lado. Esta cidade já não
tem remédio. As notícias sobre o futuro são assustadoras. De que
estás à espera, Arueta? De um milagre?
–
Não
quero ir, Artujo. Não saio daqui. Quero ver e entender tudo até ao
fim. Não me interessa acompanhar a morte à distância. Prefiro
vivê-la de perto. Quando a vida era normal nas cidades, esquecíamos
as coisas com facilidade, perdíamos o fio à meada, vivíamos
maquinalmente, vivíamos quase só por viver ou quase só por nos
terem trazido ao mundo. Quando o movimento da Terra fazia que o Sol
se levantasse e se pusesse, sabíamos sempre que era assim e era
assado, tudo estava previsto, calculado, medido a cronómetro,
espiado pelas máquinas. A natureza perdera a sua graça. Poucas
surpresas já nos eram reservadas. Agora, é diferente. O calor veio
maior do que nunca e mudou o curso normal das coisas. Tudo passou a
ter um significado próprio e inesperado. Agora, vê-se mais
claramente, apesar da poeira. Esta poeira é como se não fosse
poeira. Este crepúsculo permanente que desabou sobre nós como uma
estrela estilhaçando-se contra as casas é uma outra forma de ver
mais longe. Ao menos, agora, fica tudo às claras. Este inferno
assusta, é certo, mas faz-nos ver o que antes não víamos e
julgávamos ver. Estou bem assim, meu caro Artujo. Sinto-me tão bem
que não quero ir contigo a parte alguma. Ficarei nesta casa até ao
fim, até ao instante do último suspiro. Aqui, vou saboreando as
coisas que sucedem em visíveis acidentes perpétuos. Esta tragédia,
ao menos, teve a virtude de acabar com uma vida sempre igual, de
acabar com a monotonia, o cansaço, os dias sensaborões. Deixa-me
gozar este calor! Quero sufocar aqui mesmo. O amor é esta
espontaneidade macia e dócil como a poeira. Gosto muito da tua
árvore. É, sem dúvida, uma forma original de me amares. Mas não
me apetece discutir contigo indefinidamente. Se antes nunca me decidi
por ti, não é agora que o vou fazer. Tens a tua vida, eu tenho a
minha. Para te dizer a verdade, neste momento, só me apetece comer.
Estou com uma fome danada. Há carne e salsichas no frigorífico. Faz
qualquer coisa e vê lá se perdes essas manias ultrapassadas de
transpor o cinema para a realidade.
Como
se estivesse em sua própria casa, Artujo
dirigiu-se à cozinha, rodou o botão de gás do fogão, premiu-o,
deixou sair o gás como um zumbido de libélula e permitiu que a
chama saltasse, fazendo pum e pondo-se a dançar como uma bailarina
desengonçada.
5
Terrez
apareceu, entrando sem bater à porta, como sempre, e trazendo ao
ombro uma velha bicicleta enferrujada, sem pedais nem pneus, nem
assento, só com o quadro e os arcos das rodas. Encostou-a à parede,
no lado oposto onde se encontrava a árvore, voltou a sair e, de
regresso, trouxe duas abóboras, colocando-as silenciosamente no
chão, uma de cada lado da bicicleta. Depois, sentou-se no sofá e
pôs-se a coçar a cabeça com a polpa dos dedos.
Arueta
disse-lhe:
–
Tira
a camisola, Terrez. Não sei como suportas este calor – e, enquanto
falava, avançou para o velho e desatou a puxar-lhe a camisola de lã,
tentando tirá-la pelo pescoço.
Terrez
ficou de braços no ar, como se alguém lhe apontasse uma arma, e
dizia:
–
Olha
que isto, para mim, é uma brincadeira, Arueta. Qual calor, qual
treta! Não vês que o amor é mesmo assim?
Arueta
puxava, puxava, fazendo rir Terrez de rosto enterrado na camisola.
Mas,
de repente, o velho paralisou os braços e os risos.
Tinha o corpo tenso e duro como o tronco de um castanheiro. Teve uma
visão: estava acocorado no peitoril de uma janela, pelo lado de
dentro, e ele, sempre ele, inclinando a cabeça para trás. O calor
secava-lhe a garganta apertada, contraída por uma grande emoção. A
janela aonde Terrez subira não tinha vidros, estava aberta de par em
par, mas não se podia sair por ela. Era como se tivesse barras sem
as ter. Um cheiro galopante, cheiro a pólvora e cavalos, entrou-lhe
violentamente pelas narinas dilatadas.
–
Os
cavalos…, a pólvora… – disse Terrez, ao mesmo tempo que se
atirava aos pulos sobre o sofá, com a camisola enfiada na cabeça e
os braços erguidos, imitando o voo de uma ave. Arueta pediu-lhe que
se deixasse daquilo, que saísse dali, mas sem resultado. Terrez não
a ouvia. Estava longe, muito longe. Saltou do sofá para o chão do
cubículo a que a sua visão o transportara e estendeu-se sobre o
cimento com os cheiros das coisas agigantando-se indefinidamente.
Juntou
algumas cascas de laranja dispersas pelo quarto e pôs-se a
trincá-las como quem saboreia um chocolate. Dentro de um sapato,
encontrou duas latas de conserva. Abriu-as e levou-as à boca,
golpeando os lábios, mas sem ligar ao sangue que lhe escorria pelo
queixo. Comeu as sardinhas avidamente e despejou o azeite pelas
goelas, de olhos fechados, parecendo imaginar que aquilo podia mesmo
ser cerveja.
Ouviu-se
bater uma porta. Muitas portas. Nitidamente, alguém batia em portas
com vigor e desespero. Portas longínquas, mas próximas. Ouviam-se
vozes, gemidos, gritos, que se confundiam com o eco das mãos batendo
na superfície metálica das tardes quentes.
Terrez
descontraiu-se. Despiu a camisola de lã, para fazer a vontade a
Arueta. Depois, tirou também as calças e o resto. A seguir,
levantou-se do sofá, e disse:
–
Por
uma destas é que eu não esperava! Pensei que já tinha esquecido
esta visão. Por favor, tragam-me o esquecimento e tudo se resolverá.
Estou lixado. Agora é que são elas. Mas, afinal, que estou aqui a
fazer? Que vergonha! Estou murcho, murcho como um figo passado.
Terrez
foi à porta, esquecendo-se por completo da presença de Arueta, bem
como da bicicleta e das abóboras que trouxera, e saiu, abalando nu
para dentro da cidade, até desaparecer ao longe por entre o pó
agitado, aos pulinhos como se o vento o levasse, mas vento não havia
depois do grande clarão. Só crepúsculo e casas desmoronando-se.
6
Ouviu-se
um barulho no exterior da casa. Mireu foi à
porta que dava para o pátio e, com a mão sobre o trinco, espreitou
pelo minúsculo olho de vidro incrustado na madeira: do outro lado,
estavam três corpos arredondados, como se figuras de plástico
insufladas de ar, abauladas, escuras. Gente de uma deselegância
assustadora e macabra. Mireu hesitou. Mas acabou por abrir,
sustendo-se muito pálido. Os três corpos mantinham a aparência
deformada e bruta que ele visionara antes de abrir a porta e que
julgara ser causada pela superfície convexa do olho de vidro. Eram
realmente monstruosos e, agora, a dois passos dele, sem a barreira da
porta pelo meio, algo os tornava ainda mais repelentes: os olhos.
Enormes, os olhos, quase saltando das órbitas, raiados por veios cor
de lilás que se entrecruzavam em todas as direcções e dividiam as
pupilas e íris em pequeníssimos gomos de cereja ou cristais de
sangue. Amparavam-se uns aos outros pelos braços e ombros, as pernas
sumindo-se nas roupas esfarrapadas. À volta dos tornozelos, saltavam
à vista feridas arroxeadas do tamanho de maçãs, como se aqueles
seres, antes presos por correias electrificadas às cadeiras da
morte, tivessem escapado às primeiras descargas desferidas pelo
carrasco. Mireu coçou uma perna e massajou o músculo retraído.
Um
dos homens quebrou o silêncio:
–
Na
estação, indicaram-nos esta casa. O calor está insuportável.
Viemos bater à sua porta porque não temos para onde ir. Dê-nos
abrigo!
–
Não
estou a perceber – retorquiu Mireu. – Indicaram-lhes a minha casa
na estação? Mas quem? Quem lhes indicou a minha casa? Quem se
atreveu a isso? Que pensam vocês que isto é aqui? Um hotel? Estão
muito enganados. A minha casa é bastante pequena e não está
preparada para servir de abrigo a ninguém!
–
Temos
falta de ar – disse o homem do meio. – E estamos inchados por
causa do calor. Queremos ar! Só ar! Dê-nos um pouco do seu ar. Nem
precisamos de comer. Este calor é o fim. Até a morte seria bastante
melhor do que esta situação. Não temos maneira de voltar para
casa. Ardeu tudo. Perdemos filhos, mulheres e bens. Deixe-nos apenas
descansar em sua casa, para podermos respirar melhor. Estamos vivos,
como pode verificar. Mas há quem diga que somos almas penadas!
–
Isto
quer dizer que também corro o risco de ficar sem ar. Não me
encontro em melhor situação do que vocês. Se vos deixo consumir o
meu ar, acabo por ficar com menos reservas. Mas se acham que a morte
é preferível a esta situação, de que estão à espera para
resolver o assunto?
–
Isso
queríamos nós! – responderam os três em uníssono. – No
entanto, morrer não é tão fácil como parece. Além disso, não
podemos ter a certeza de que, depois de mortos, não continuaremos a
respirar. Depois desta catástrofe, tudo mudou. Já nada é como era.
Temos que desconfiar, temos que desconfiar…, meu amigo. Ainda há
pouco ouvimos dizer que não há diferença entre um cadáver e um
ser vivo. Ou porque não havemos de pensar que os cadáveres estão
vivos como nós, só que respiram calor em vez de ar? Calor, sempre
calor é o que encontramos em toda a parte. Passamos a respirar calor
como os cadáveres, quase sem darmos por isso, e, a certa altura,
deixamos de existir simplesmente. Onde fica a morte no meio de tudo
isto? Vem aos poucos ou vem de repente?
–
O
que me parece é que estou perante três cadáveres andantes! –
disse Mireu.
–
Não!
Ainda não! – protestou o primeiro a contar da esquerda. – Ainda
respiramos calor misturado com os restos de ar que escasseia na
cidade. Só quando entrarmos na fase em que respiraremos
exclusivamente calor passaremos a ser considerados cadáveres. Mas é
bem possível que continuemos a respirar mesmo depois de mortos. Não
sei se digo isto por influência da situação em que nos encontramos
ou se as minhas palavras fazem mesmo algum sentido. Ouve-se dizer
muita coisa desde que aconteceu esta desgraça. E não sabemos em que
havemos de acreditar. Já nos disseram que a morte consiste apenas na
subida da temperatura dos corpos, lançando todos os seres em agonia.
E garantem-nos que esta é a pior morte que pode haver. Depois,
passamos directamente do estado de agonia ao de poeira.
–
Tenho
de fechar a porta – disse Mireu – de contrário, o pouco ar que
ainda tenho dentro de casa escoar-se-á.
–
Deixe-nos
entrar por uns momentos, só por um instante – pediram os homens.
–
Cá
dentro, também tenho problemas de calor – ripostou Mireu. – Isto
não tem solução. Vocês não são os únicos a precisar de ar.
Ainda quero fazer uma quantidade de coisas.
Os
homens, porém, não desistiram. Avançaram e forçaram a porta, por
detrás da qual Mireu se refugiou. Na escaramuça que se seguiu, os
homens rolaram sobre os degraus da escada de madeira e caíram de
costas no pátio, de bocas abertas, secas, as línguas contorcendo-se
para lá das gengivas desdentadas, saboreando o calor por entre
gritos que faziam eco na carroçaria do automóvel alaranjado de
velhice.
No
pátio, cheirava a carne queimada e borracha. Os três
corpos jaziam estendidos no asfalto, a pele rebentando aos poucos,
arroxeando nas articulações, clareando nas superfícies mais lisas
e moles.
Mireu
foi espreitar pela janela: os ventres dos monstros respiravam, iam
abaixo e acima, abaixo e acima, os ventres dos cadáveres agonizando.
7
Era
um resfolegar aflito, assanhado, do outro
lado da vidraça, que ficava mesmo à beira da cama. Um gato miava
com insistência lançando olhares de fogo para dentro de casa,
enquanto saltitava no peitoril exterior da janela. O bicho estava
eriçado, como se os seus pêlos fossem milhares de agulhas afiadas
prontas a fazer estoirar a atmosfera, movendo a cabeça em círculos,
agitando a cauda, mostrando os dentes aguçados.
Arueta
dormia, com a mão direita fechada e o dedo indicador espetado,
parecendo adivinhar um destino em que a casa surgiria renovada,
completamente outra, para lá do tempo, um destino no qual Mireu se
havia de perder para todo o sempre.
Mireu
estava de papo para o ar, dormindo a seu lado e tossindo. Tossir era
um dos seus hábitos quando dormia.
Arueta
e Mireu estavam muito próximos um do outro, permitindo que os lábios
dela roçassem no ombro esquerdo dele.
O
gato não desistia e investia ferozmente contra a vidraça
empoeirada, expelindo sons numa linguagem qualquer, da qual ficava a
impressão de se entender algumas expressões, mas que perdiam o
sentido no meio da irritação do animal.
Atraído
pelo barulho, um vulto destacou-se, vindo do fundo da casa, um vulto
de alguém visivelmente incomodado pela poeira e claridade baça do
crepúsculo. Era o vulto de uma mulher, que não era ainda bem
mulher, embora não se pudesse dizer que fosse menina. Tinha os seios
pequenos, salientes, pontiagudos e trazia uma saia quase transparente
que deixava ver a forma elegante das ancas.
Tinha
o ar de se chamar Luana, e assim era.
Dirigiu-se primeiro à janela e, depois, subiu para a cama onde
Arueta e Mireu dormiam, procurando esquecer a tempestade que mudara
tudo. Luana fez um sinal ao gato, comprimindo o dedo indicador da mão
direita sobre os lábios carnudos. Em seguida, quase flutuando sobre
a cama, pôs-se a fazer gestos, como se dizendo:
–
Acalma-te,
deixa-te de coisas, não tens nada que estar aí a espiar, vai-te
embora, desaparece, não perturbes a vida de quem tem mais que fazer.
Luana
abriu as duas mãos e ergueu-as à altura do rosto. Contou pelos
dedos qualquer coisa, qualquer ideia que lhe surgiu, procurando
desviar a atenção do felino enraivecido.
Apontou para a cidade. O gato olhava, ora para a urbe devastada, ora
para os sinais que Luana lhe fazia, enquanto ia progressivamente
acalmando, deixando de miar, serenando. E sentou-se na janela, à
espera da madrugada.
Luana
desceu cuidadosamente da cama, calçou as pantufas de Mireu e saiu do
quarto pé ante pé. Atravessou a cozinha, flanqueou a porta de
entrada da casa, que rangeu, quase se desconjuntando. O gato entrou e
saltou para os braços de Luana, que o beijou nas orelhas, nos olhos
inflamados, enquanto voltava a colocar as pantufas junto à cama onde
Arueta e Mireu dormiam, e desapareceu com o gato para os fundos da
casa, para lá da porta do quarto onde se ocultavam as sombras
móveis, de repente fixas, ondulantes.
8
Dois
alguidares de barro, com bordas retorcidas,
foram postos sobre a mesa. Nícora pôs-lhes farinha dentro e,
depois, Zava tratou de lhes vazar as doses certas de manteiga. Nícora
voltou com um grande saco de açúcar e despejou metade em cada
alguidar. Acrescentaram mais alguns gestos ao ritual e puseram-se as
duas com as mãos dentro da massa, calcando, espremendo, calcando,
espremendo. Ritmicamente, davam socos, puxões e abanos de meter dó
na massa disforme em que as suas mãos se misturavam. Foram
desaparecendo os grânulos e bolhas iniciais. A massa tornou-se mole
e elástica. Nícora e Zava puxavam-lhes as faces, como se fossem
bochechas, e sacudiam-nas contra as bordas dos alguidares. Derramaram
leite sobre a massa estafada e pálida.
No
fim de tudo, estavam as duas mulheres cansadas, mas por detrás das
bagas de suor adivinhava-se prazer nos seus rostos. Nícora
e Zava tinham línguas de massa coladas às mãos e pulsos, como
tumores na pele.
No
lavatório, ouviu-se o barulho da água no chuveiro, batendo contra
os azulejos subitamente despertos. As
mulheres riam e falavam alegremente, ensaboando os corpos nus. As
suas palavras saltitavam molhadas e respigavam contra as paredes
escorregadias da banheira.
–
Às
vezes, ponho-me a pensar… – disse Zava. – Ponho-me a pensar na
paz das coisas que, muitas vezes, não é paz nenhuma. Repara que os
azulejos reagem aos respingos da água como se repetissem com ironia
as palavras inúteis que dizemos! As coisas paradas à nossa volta
captam aspectos que nos escapam. Estamos sempre a mexer, enquanto os
objectos se limitam a olhar, observar, analisar, para compreender
melhor o que se passa. Distraímo-nos com todo o tipo de palavreado,
deixamo-nos levar facilmente por delírios, conjecturas,
pressentimentos.
Enquanto
ensaboava um dos ombros, deu ideia de que
Nícora se preparava para acariciar o seio esquerdo de Zava, mas o
esboço do gesto não passou de uma simples ilusão.
–
O
nosso cérebro é maior do que o dos outros animais – continuou
Zava – embora esse crescimento seja provocado por uma sabedoria
falsa que a nada nos tem conduzido. Quando alguma coisa cresce sob
pressão de um estímulo artificial torna-se uma realidade estranha
ao equilíbrio e ao discernimento. Não será o pensamento esse
artifício? A passividade dá-nos um profundo entendimento da vida.
As coisas estáticas, inanimadas, vivem em perfeita harmonia, não
entram em conflitos, não se atropelam umas às outras, não são
afectadas por neuroses nem por outras doenças mentais. Não
trabalham, não mexem, não vivem em permanente angústia. Quem me
dera ser um azulejo, um bidé, uma torneira.
–
Apetece-me
tocar-te e apalpar-te – disse Nícora. – Mas tenho receio que
interpretes mal o meu gesto. Prefiro tocar-te do que tocar numa mesa
ou numa vidraça. Sei que tens sangue correndo dentro de ti e um
coração pulsando no peito. És quente e vibrante, ao contrário da
maioria dos objectos que nos rodeiam. Tens alma, sensibilidade,
inteligência. Prefiro a carne viva, mesmo que eu não tenha coragem
de fazer deslizar as minhas mãos com o sabonete sobre a tua pele.
Mesmo assim, és tudo, agora, és tudo o que me rodeia, tudo o que
conta. A vida reduz-se a nós as duas nesta banheira, vivendo sob a
mesma água, embora cada uma no seu mundo íntimo. O tempo parece ter
parado, é certo. Ou terá sido o sol, o dia, não interessa. Pode
ser tudo uma impressão nossa, uma vivência passageira para a qual
ninguém estava preparado. Se tivesse sido assim desde o princípio,
se esta fosse realmente a regra das nossas vidas, não teríamos
envelhecido tão depressa. E podemos mesmo especular sobre a
possibilidade de neste intervalo de tempo as nossas células não se
encontrarem em processo de degradação. Como vês, nem tudo é
negativo no actual estado de coisas. Talvez por isso eu te sinta mais
viva e vibrante neste momento. Repara que, agora, não nos damos
conta de qualquer monotonia, apesar de nada de especial estar a
acontecer entre nós, só a água correndo no chuveiro. O que
irritava era a anterior agitação da cidade, por contraste com o
tempo de harmonia que agora partilhamos.
–
Esfrega-me
as costas – pediu Zava, voltando os rins para Nícora. – Às
vezes, sinto que sou tantas coisas ao mesmo tempo; às vezes, julgo
que posso ter tudo o que os meus olhos atingem. É como se tivesse
dezanove sentidos – ia dizendo Zava, enquanto Nícora lhe ensaboava
as costas meigamente.
Os
dois alguidares continuavam imóveis sobre a mesa, envoltos por
grossas mantas, entaladas entre o barro e a madeira. A massa levedava
sem se dar conta, pouco a pouco, de forma invisível, até que, ao
fim do dia, havia inchado como uma mulher à espera do parto.
Na
cozinha, Nícora surgiu em trajes menores,
nervosa e apressada, a fim de apagar o fogão, em cujo forno um
frango assava, indiferente ao que acontecia em redor.
O
calor que envolvia a cidade fazia lembrar o inferno. A memória das
labaredas medonhas permanecia, deixava-se estar, quer os relógios
estivessem parados ou em movimento, assentava como a própria
existência na alma das coisas, uma existência para além da qual só
havia ser, sempre existência.
9
As
ruas estendiam-se, desertas, entrecruzando-se em esquinas abandonadas
à inquietação dos reflexos. Viam-se algumas flores dispersas,
doentes, sufocadas, com a cor dos moinhos de vento, refugiadas nos
canteiros desta ou daquela casa. Do antigo jardim, que ficava a
meia-dúzia de passos da casa de Mireu, nada restava. A verdura
sumira, afundando-se na tristeza da cidade.
Mais
do que a ausência de pessoas, era a maneira estranha como as casas
se olhavam na ligeira obscuridade do pôr-do-sol
que deixava aquela sensação de abandono a quem se atrevia a andar
na rua. A cor acobreada dos dias levava a uma invulgar comunicação
entre as coisas. Os postes de luz, o alcatrão das ruas, as pedras
desalinhadas de quando as crianças brincavam nos parques, os muros
baixos de cabeleira desgrenhada, tudo isso convergia para as casas
silenciosamente inquietas. Nas janelas, cicatrizes de poeira
infiltravam-se pelas vidraças. As casas alinhadas ao longo das ruas
deixavam um hálito de agonia pairando sobre a cidade.
Arueta
caminhava por uma ruela aparentemente sem direcção. Detinha-se
junto às árvores secas, encostava-se aos seus troncos esfomeados,
mas firmes, ainda. Escorregava as mãos numa carícia pelas rugas que
o calor deixara nas árvores. Passeava, indiferente aos efeitos e
perigos da tempestade. Depois de um período em que praticamente não
saiu de casa, receosa dos acontecimentos, decidiu sair para ver
realmente o que se passava. Os seus movimentos davam mostras de uma
profunda compreensão das coisas, como se o seu ventre fosse a chave
para a porta do entendimento.
–
Mireu é um insatisfeito e não sei o que
verdadeiramente procura – murmurou Arueta, olhando a copa despida
de um arbusto. – Nada pode existir para além desta tempestade. No
fundo, é inútil procurar ter ideias sobre as coisas. Nunca se chega
a qualquer conclusão alimentando teorias e raciocínios. Pensar,
pensar, tem sido o mal dos Homens. Para quê pensar se temos tanto
para fazer à nossa volta? O único conhecimento possível está em
tocar e sentir as coisas como elas são. O resto não interessa. Não
dependo de Mireu no que quer que seja. Nunca admitiria uma tal
situação. Até na cama posso substitui-lo com a maior das
facilidades. Se um dia quiser ter um filho, não me faltarão
maneiras de o conseguir.
Arueta
vislumbrou qualquer coisa na porta de uma casa. Era um bilhete,
suspenso num pedaço de adesivo amarelado. Leu-o, guardou-o e
sentou-se pensativa num degrau do patamar, com os cotovelos nos
joelhos e o queixo apoiado nas mãos. À sua frente, via-se o parque
infantil, sem crianças a pular. Mas o parque lá estava, existia,
fazendo recordar bibes, calças, camisas, saias, deslizando
vertiginosamente nos escorregadouros, viajando em círculos
mirabolantes no carrossel. O parque lembrava era uma roda-viva, mesmo
na ausência de crianças. Os corpos haviam dado lugar ao calor que,
para aumentar o inferno, parecia vestido com roupas coloridas de
crianças mortas, desaparecidas. Rodopiando sobre o seu eixo, o
cogumelo enferrujado parecia uma nova maneira de pôr a roupa a
secar.
Arueta
tomou o caminho do areal, evitando com os pés as feridas do alcatrão
abrasador. Na berma das ruas, viam-se ramos secos caídos sobre a
relva enegrecida, sacos de lixo esburacados por cães vadios,
automóveis abandonados às portas das garagens. Dos esgotos, vinha
um cheiro insuportável a galinhas assadas.
Arueta
sentou-se sobre a areia molhada, vendo a água amolecer à sua frente
em ondas frágeis. A agonia prolongava-se da cidade para o mar
imenso. Observou em volta para se certificar se realmente a
tempestade que desabara sobre as casas conseguira roubar às ondas a
força da espuma. Percorreu com os olhos as ruas cheias de lixo, os
carros parados, as casas com aquele meio sorriso dos cadáveres e as
esquinas de longe sabendo a cinza.
Arueta
levantou-se. Não conseguia estar sentada por muito tempo. Havia no
ar moribundo um peso que a angustiava. O sol do crepúsculo espreitou
por entre a colcha maciça de nuvens, fazendo brilhar algumas
estrelas de suor na sua pele. As manchas de óleo no mar faziam
lembrar pequenas lagoas de prata, mas o dia não demorou a sua eterna
cor de chocolate enferrujado.
Arueta
regressou a casa, sem mais nada, cantarolando, apenas, em bemóis
sussurrados nos lábios secos. A sua saia ondulava, como se a alegria
e a espuma anteriores à tempestade tivessem passado do mar para o
corpo dela. Uma vaga, ténue esperança, animava-lhe os passos, em
contraste com a cidade calorenta e arruinada.
10
Artujo
desatou a vomitar no meio do quarto, salpicando o tapete de corda de
pequenas bolhas amarelas. Gemia e contorcia-se, protegia o estômago
com as mãos. Havia uma lama pastosa tipo mel sobre o soalho. Artujo
meteu os dedos na boca e vomitou mais como se gostasse do que fazia.
–
O
arvoredo – disse Artujo. – É o arvoredo, Zava! Porque não
hei-de falar nestas coisas? De que vale engolir em seco toda a vida?
Artujo
insistia que era importante, pedia que ela o ouvisse, e dizia que
tinha a nítida recordação de se atirar em desatino por entre o
arvoredo, de esfolar os joelhos, de violar com os pés a folhagem
seca, que era uma espécie de algodão sobre a terra fria e fresca.
Andava sempre com os sapatos cheios de nódoas, explicava ele, e
partia os galhos das árvores com as mãos como se atacado por uma
febre que o fazia respirar em excesso. Encontrava cogumelos
repousando à sombra da tarde, fugindo logo a seguir, petrificado de
medo. Diziam-lhe que era o pão do demónio e ele acreditava. Fugia
como se visse o demónio em pessoa. As pedras musgosas dos muros
enevoavam-lhe os olhos. Procurava subir as paredes agarrando-se à
saliência das pedras, escorregava, caía, batendo com a nuca na
terra dura. Levantava-se, corria vingativamente contra o vento,
contra o tempo, galgando pequenas colinas que o rebentavam por
dentro. Enfiava as mãos na terra e vinham-lhe raízes coladas nos
dedos. Procurava ovos de galinha em toda a parte.
Certa
vez, sentou-se, estafado e desiludido. Fechou os olhos. Ao abri-los,
mais tarde, viu a seu lado quatro ovos
brancos como bolas de golfe. Pegou neles e desatou a correr aos
gritos pela vereda. As moscas tropeçavam-lhe na garganta, o suor
ardia-lhe como sumo de limão debaixo dos braços. Deixou os ovos
entre os lençóis de Luana, que ainda dormia, e foi esconder-se o
resto da tarde na cova do castanheiro, rodeado de espadanas que lhe
rodeavam a intimidade, à espera de Luana dentro da camisa suja.
Quando
ela chegou, trazia figos passados nas mãos
esguias e brancas. Sentou-se junto dele e ambos se puseram a comer os
figos. Artujo mirou-lhe os joelhos e aproximou-se dela para lhe
cheirar os cabelos. Levantou-lhe a saia e acariciou-lhe as pernas
brancas. Vigiou por entre a verdura, para se certificar de que
estavam realmente sós e disse:
–
Mostra-me
a tua coisa…
Ela
acendeu os olhos, como se esperasse por aquele pedido há muito tempo
e respondeu que o corpo dele cheirava a areia da praia. Depois, Luana
deitou a cabeça sobre as pernas de Artujo e os seus cabelos pareciam
um bocado de noite que o vento fizera desprender do castanheiro. Ela
desapertou-lhe o cinto, desabotoou-lhe as calças, puxando-as para os
joelhos, beijou-lhe as pernas, o que lhe aumentou o ritmo
respiratório como se lhe tivessem chicoteado o coração e desatou a
lambê-lo, enquanto falava do areal. Disse várias vezes que o corpo
dele era um areal. Andou às voltas com a língua nos seus joelhos,
prometendo que nunca o esqueceria.
–
És
a pessoa mais importante da minha vida – garantiu Luana, com olhos
de quem fazia uma jura para a eternidade e fazendo que a sua saliva
deixasse sobre as pernas dele veios de humidade e brilho como os
caracóis. Artujo esbugalhou os olhos para o céu e viu as nuvens
passando alto e rindo a bandeiras despregadas do prazer que Luana
semeava na sua vida. Estendeu uma mão e acariciou os lábios de
Luana, que toda se desvaneceu, arrepiada com o gesto dele. A seguir,
ela agarrou-lhe um dos dedos com os dentes e mordeu-o nas
articulações. O dedo de Artujo parecia uma lagartixa na boca de
Luana, um animal de vento que se perdia na superfície húmida da sua
língua sem limites. Luana engoliu-lhe o dedo até à garganta,
prometendo amor e beijos, à sombra da verdura oscilante.
–
Quero
o teu mel – dizia ela, nos intervalos em que tirava e metia na boca
o dedo de Artujo. – Quero o teu mel e tudo o que tens dentro de ti…
Mas
Artujo não ouvia nada, nem podia ouvir, porque estava quase
inconsciente de ter na boca o dedo de Luana. Nunca lhe tinha
acontecido uma sensação daquelas. O calor da garganta de Luana
inundava-lhe os sentidos até perder a noção do que se passava.
Ela
levantou-se e foi sentar-se junto às grossas
raízes do castanheiro, que pareceu cambalear na sua grandeza, como
se empurrado por uma vertigem mais aguda. E sem que nada o fizesse
prever, ela desceu as calcinhas, acocorou-se e urinou sobre a terra,
fazendo um minúsculo ribeiro que descia por entre os insignificantes
acidentes do solo.
Artujo
não se atreveu a olhar, como se dele dependesse o destino do mundo,
ou como se o seu futuro pudesse atravessá-lo naquele preciso
instante.
–
Não te esqueças desta parte, agora – disse Artujo para Zava –
porque tenho as palavras exactas para descrever o que então se
passava nesses dias em que o meu amor por Luana era alimentado sob o
segredo de um castanheiro.
Ao
entardecer, partíamos de corpos frescos como duas aves rebocando
nuvens e como se nada antes tivesse acontecido
ou a vida se resumisse àquele momento sem história. Então,
debruçávamo-nos os dois à janela da casa e esperávamos,
esperávamos horas, até que surgissem as ovelhas, e até que
passassem, até que desaparecessem na curva mais longínqua da
estrada. Talvez não acredites, Zava, mas a verdade é que não
tínhamos a mínima dúvida de que as ovelhas, ao passarem diante da
janela, nos saudavam do fundo da alma, com os seus guizos estridentes
e os seus olhares matreiros, por detrás dos quais se ocultavam as
mais indizíveis cogitações.
11
Silécio
estava recostado sobre a cama e não dizia palavra. A seu lado,
Artujo falava sem compassos de espera, gesticulando exageradamente
com as mãos. Estava desfigurado, como se não soubesse onde
encontrar forças para suportar o calor. Tinha os cabelos e a barba
quase por completo derretidos.
Silécio
olhava-o insistentemente, como era seu costume fazer, mas sempre
calado e sem esboçar qualquer reacção. Silécio não era,
evidentemente, uma pessoa comum. Tinha pernas esguias e longas como
as mulheres mais belas, ancas salientes, rigorosamente desenhadas. O
peito peludo, o nariz achatado, braços musculados. Usava o cabelo
cortado à escovinha e a face completamente rapada. Olhos muito
claros, quase transparentes. Andava sempre de tronco nu e dos seus
ombros corria uma espécie de água que escorria por entre os pêlos
do peito até aos mamilos e umbigo. Era transpiração. Mas uma
transpiração pesada, carregada de momentos por explicar. Nunca
emitia juízo ou palavra, mas sabia-se que não era uma simples
estátua pela água que lhe corria dos ombros (uma água que o calor
nunca tivera artes de secar) e por alguns acessos de fúria que o
levavam a percorrer toda a casa, movimentando os braços em círculos,
apontando coisas, dizendo que “não” e “sim” com a cabeça,
ajoelhando-se, deitando-se, rebolando no chão. Tudo isto sem o menor
som ou ruído.
Artujo,
por seu lado, falava como se Silécio fosse seu amigo de há longa
data:
–
Estávamos
sentados na casa da lenha, o velho e eu, no meio do silêncio e da
escuridão. A casa era feita de grandes pedregulhos, que deixavam
passar a claridade da noite pelas reentrâncias desguarnecidas. A
porta era uma simples abertura na parede, que dava para a quinta e
nos deixava ver as estrelas luminosas que percorriam o céu, estás a
ouvir-me Silécio? – perguntava Artujo, desconfiado de não ter a
atenção do outro. – A certa altura, perguntei ao velho Terrez se
ele pensava que os homens viriam naquela noite. Era natural que ele
soubesse melhor do que eu. Terrez respondeu-me que devíamos estar
atentos a ver se detectávamos algum rastejar sobre a fuligem.
Depois, calou-se, apesar de eu lhe ter perguntado o que tencionava
fazer quando os homens aparecessem. Creio que Terrez não tinha
ideias muito claras sobre o assunto. A casa onde pernoitávamos
estava praticamente em ruínas. No tecto, havia teias de aranhas
dependuradas como estalactites de nylon. Com o vento, os fios das
teias balouçavam e roçavam o nariz de Terrez, que se mexia,
aborrecido, tapando o rosto com as mãos, invadido de repente por uma
culpa insuportável. O vento chegava a sacudir-lhe a cabeça, embora
aquele me parecesse um vento fraco, o que me fez então pôr a
hipótese da leveza das ideias de Terrez. Estávamos deitados sobre a
lenha. Terrez puxou o chapéu para os olhos e reclinou a nuca sobre
as mãos cruzadas. Mas reparei que ele não dormia. Mais tarde,
estava eu quase a adormecer, quando o vi soerguer-se e acender um
fósforo, sem razão aparente. Terrez tinha manias assim, fazia
coisas absurdas, com frequência. Quando riscou o fósforo, uma nuvem
de pó de ouro surgiu entre o meu rosto e o dele. “Lembra a tua mãe
para dar de comer aos porcos!”, disse-me Terrez. Nessa mesma
altura, ouvi ladrar na horta. Ouvi mesmo ladrar e fiquei com um medo
que nem calculas. Terrez disse-me que aquilo não era nada, que fora
simples impressão minha. Mas não me satisfiz e fui à porta vigiar.
Sabes o que vi? Fumo, muito fumo, fumo branco subindo na noite. Corri
logo a avisar Terrez. Ele foi ver e respondeu-me que aquilo não era
fumo nenhum. “Aquilo são nuvens, meu palhoco”, explicou. No
outro dia, acordámos com um cheiro a sangue invadindo a casa da
lenha. Corremos os dois para a horta. Entre os caules esmagados e o
verde áspero das folhas rasteiras pisadas, havia melancias
destruídas, mortas, esquartejadas, com marcas de dentes e dedos
humanos. O sumo vermelho parecia sangue escorrendo tristemente por
entre os poros da terra. Estava um dia muito claro, mas não víamos
o sol, não, isso não víamos. Terrez chorava em altos berros e eu
também. Pensei que ele estava com mais medo do que eu, mas hoje não
tenho a certeza de ter sido mesmo assim. Terrez afastou-se das
melancias decepadas e caminhou para uma parede lateral da quinta.
Nessa altura, pensei que ele tinha perdido o juízo. Mas eu estava
enganado. Pelo menos, naquela altura, eu estava redondamente
enganado. Dirigindo-se sempre para a parede, Terrez continuava a
fixar a casa da lenha, com uma mão sobre os olhos, procurando evitar
as feridas que a luz intensa provocava. Junto à parede, abriu a
braguilha e pôs-se a urinar contra os musgos e as pedras.
Silécio
desaparecera sem que Artujo se desse conta. Mas voltou. Tinha ido
buscar uma laranja, que se pôs a descascar.
–
Não
ouviste o resto da história – disse Artujo.
Silécio
não respondeu. Partiu a laranja em duas, oferecendo a Artujo uma das
metades. Comeram os dois. E ficaram a olhar-se, sem palavras.
12
–
Tenho
ouvido ruídos esquisitos dentro de casa e lá por fora – disse
Mireu. – Se há ruídos é porque há movimento e que é a vida se
não o movimento das coisas? Não consigo tirar da ideia o que me
disseram aqueles monstros acerca da agonia e do calor.
Mireu
achava ter agora os dados suficientes para encontrar uma solução
para o problema da morte. Observando bem o que se passava na cidade,
dava a impressão de os corpos, as casas, as sombras, os reflexos, os
detritos, não estarem completamente destruídos. Estaria ele a ser
influenciado pelo que lhe tinham dito? Em vez de morte, realmente, o
que pairava sobre a cidade podia ser uma agonia generalizada.
–
Os
corpos não mexem devido ao calor – disse Mireu a Arueta. – É
possível que a morte seja isso mesmo: uma respiração muito suave,
calma, maliciosa; uma respiração tão frágil que seja mesmo
imperceptível para quem está de fora.
Mireu
tinha dúvidas em relação ao que se passava nos cemitérios, onde
os corpos jaziam duros, pálidos, inchados, tísicos. No fundo, não
estariam eles vivos, semivivos pelo menos, respirando como num quase
segredo? Vendo bem as coisas, a agonia podia ser o fim de tudo. Se
assim fosse, a morte não existia, só a agonia, daí se passando
directamente ao estado de decomposição, que já não era agonia,
mas também não era morte (por ser decomposição). A morte, na
melhor das hipóteses, só caberia nos milésimos de segundo em que
um indivíduo deixava de respirar, passando depois ao estado de
desagregação. Mas Mireu achava que assim não poderia ser, porque o
último respiro ainda pertencia à fase de agonia e o que logo de
seguida acontecia era já o primeiro momento da decomposição. Mireu
considerava que não havia mesmo lugar para a morte. E as pessoas
tinham vivido assustadas e aterrorizadas durante anos sem motivo para
isso.
As
situações de excepção, de anomalia, levavam-nos a poder verificar
como as coisas eram, realmente. Se a morte existisse, isso
significaria uma paragem no movimento, uma abstracção pura, porque
o movimento é algo de concreto e palpável, não podendo lidar-se
com ele ao nível da teoria.
–
O
movimento não se pensa – disse Arueta. – Estamos nele e o que
fazemos é segui-lo, senti-lo. Há que ver as coisas por um prisma de
ligação física com a terra e não de meros raciocínios infundados
e abstracções falsamente construídas. E por que havemos sequer de
falar nestas coisas? Penso que basta senti-las. É uma futilidade
tentar traduzi-las por palavras. Não faz sentido comunicar aos
outros as experiências íntimas por que passamos. O modo como
sentimos as coisas e o seu movimento é indizível. Quando tentamos
dizer o que não se diz estamos a falar de coisas diferentes daquelas
que pretendíamos realmente dizer.
–
Estás
a insinuar que me devo calar? – perguntou Mireu.
–
Não
é preciso tanto – respondeu Arueta. – Falemos de coisas banais.
Mesmo que o não queiras, falando do movimento, da morte, da vida,
nunca deixas de ser banal. Guarda para ti o prazer de viver e sentir.
Eu entenderei tudo o que me queiras transmitir pelo bulir dos teus
músculos, pela intensidade dos teus olhares. Estarei atenta ao
mínimo pormenor que exprima dor ou alegria no teu corpo. Por este
caminho, chegaremos a algum lado.
Mireu
estava sentado à mesa e aparentava dificuldade em respirar. Tinha o
corpo tenso e as mãos crispadas na borda da cadeira. Fazia caretas,
abrindo muito as narinas à procura de ar. No seu rosto seco e
prematuramente enrugado, notava-se uma mancha vermelha, que podia ser
sangue ou mercurocromo. Um raio de sol incidiu na moldura metálica
de um quadro na parede e, mudando de rumo, fez a mancha vermelha
brilhar no rosto de Mireu, que apoiou a cabeça na mesa, sacudiu-a
várias vezes, pondo-se a esfregar o nariz na madeira. Dava safanões
e batia com o rabo no assento.
Ouviu-se
claramente raspar no telhado da casa. Mireu ficou pálido, o que
realçou a mancha vermelha de mercurocromo, ou sangue, na sua face,
dando-lhe um ar de palhaço.
Mireu
refugiou-se nos olhos de Arueta. Lá fora, as árvores mexiam. A
poeira e o sol agitavam as coisas e entravam pela janela,
empalidecendo a surpresa dos olhares inquietos, num fim de tarde que
parecia estar longe do termo.
13
Luana
desviou a mesa de cana e pô-la a um canto do quarto. Sentou-se no
tapete de corda, encolheu as pernas e inclinou-se para trás, até
encontrar o conforto da superfície áspera na
qual desaguavam todos os passos da casa. Os seus cabelos negros
confundiram-se com a massa de corda entrançada. Os olhos de Luana
davam a ideia de mil lâmpadas se terem repentinamente acendido à
sua frente. O seu corpo contorcia-se como o de um moinho de vento em
tardes de calor e monotonia. A certa altura, o tapete de corda
pareceu enrubescer sob os movimentos de Luana, dando a ideia de que
se distendia para gozar as delícias dos seus músculos. Luana
movia-se como um mar de carne embravecido e as suas ondas retesavam o
tapete por entre gemidos perturbados. Luana estendeu as pernas.
Abelhas de desejo subiram-lhe pelas coxas e rins. A agitação fazia
estremecer a bicicleta enferrujada e as abóboras. Luana pegou em
duas pontas do tapete e cobriu-se, por completo, vendo-se o
entrançado de cordas vibrando e ondulando ao sabor das suas formas,
que só se explicavam pela fúria das vértebras dobrando-se como
círios aquecidos, tudo no meio do maior silêncio e discrição.
Artujo
entrou no quarto e vendo o tapete enlouquecido com Luana lá dentro
sentiu grandes marteladas nos miolos. Tapou o nariz com a mão para
evitar o cheiro a galinhas assadas que voava pelo quarto. O tapete
completamente enrolado sobre Luana parecia-lhe um pénis monstruoso
cheio de ar.
Artujo
saiu do quarto furioso e entrou numa ventania pela casa de banho.
Encontrou Terrez a urinar, segurando o pénis nas mãos calosas.
Artujo deteve-se estupefacto e disse:
–
O
teu pénis é tão grande como um tapete com uma pessoa lá dentro!
Isso é feito de borracha? Até parece que estás doente. Para te
dizer a verdade, não queria ter esse defeito dependurado entre as
pernas! Um pénis normal, Terrez, deve ser do tamanho do meu, pouco
ou nada maior do que um clítoris. Elas gostam é dos pequenos. Estás
lixado, meu caro. Tramaram-te a valer! Ainda não mataste ninguém
com uma coisa desse tamanho descomunal? Vês como Luana geme,
coitada? É o tapete de corda, que por ser tão monstruoso, está a
magoá-la. É demais. Uma crueldade. Vamos libertar Luana! Vem
ajudar-me, Terrez. A miúda não aguenta um exagero daqueles.
Olhando
boquiaberto para Artujo, Terrez disse-lhe:
–
Não
deves estar bom do juízo – e desatou em sonoras e metálicas
gargalhadas que ecoaram por toda a casa.
Artujo
saiu da sala de banho, atravessou o quarto onde Luana e o tapete de
corda continuavam infernalmente enrolados um no outro e acocorou-se
num canto da cozinha, chorando copiosamente, em silêncio, para que
não o ouvissem.
–
Nunca
vi pénis tão grandes – dizia entre soluços. – Ninguém tem um
tão bonito como o meu. Pode ser pequeno, mas é bonito. Eu é que
sei dar prazer a sério. Não tenham dúvidas de que Terrez não sabe
metade do que eu sei. Se Arueta estivesse aqui, confirmaria tudo o
que digo. O que eles querem é lixar-me a vida. Têm inveja de não
serem tão bons na cama como eu. Quero lá saber que tenham aquelas
monstruosidades dependuradas. É tudo fogo de vista. São grandes,
mas, se calhar, não funcionam. Ao menos, as miúdas não se queixam
de que as magoo e quando as galanteio faço-o sempre com
originalidade.
No
quarto ao lado, Luana rebolava-se dentro do tapete de corda, os
joelhos, os ombros, os cotovelos, comprimindo-se nas dobras das
fibras agrestes como se electrificadas, e enrodilhava as pernas até
lhe gemerem os ossos de prazer.
O
tapete abriu-se, enfim, e Luana surgiu estendida, pálida, de olhos
revirados sobre as cordas húmidas. Mantinha-se agarrada ao tapete,
vendo-se uma espécie de mel deslizando sobre os seus rins como água
fresca numa nascente. Luana deixou-se ficar deitada sobre o tapete
como se fosse uma dobra natural do corpo agora inerte e imenso.
O
peitoril da janela tinha-se enchido de
pássaros e lagartixas, que gracejavam e riam entre si. As primeiras
folhas caíram das árvores e, na queda, o calor atirou-as para o
infinito. Outras quedaram-se a meio da viagem, entre os galhos e o
chão, e ficaram a boiar no ar empoeirado, brilhando como frágeis
estrelas a apagar-se.
14
Mireu
sentou-se na cadeira de vimes, perto da árvore que Artujo costumava
regar e da janela onde era frequente aparecer o gato de pêlo
eriçado. Mexia-se constantemente sobre a almofada, como se quisesse
extrair dela as sensações de quem monta um seio gigante. Pôs-se a
mirar as pernas. Apalpou os joelhos, os tendões. Experimentou as
articulações dos dedos dos pés. Coçou uma variz e massajou os
músculos com vigor. Nos seus lábios esbranquiçados havia um
sorriso coalhado como o dos cadáveres.
Mireu
notou a presença de Silécio sentado no sofá de riscas brancas e
pretas. Por vezes, as pessoas iam e vinham, surgiam e desapareciam,
sem ele dar por nada, sem saber exactamente de onde chegavam e para
onde partiam. Mas ninguém se preocupava com isso, ninguém procurava
saber os motivos pelos quais havia momentos em que a casa estava
cheia e outros em que parecia um verdadeiro túmulo.
Silécio
observava Mireu, que lhe pagou com a mesma moeda, olhando-o de forma
provocadora, primeiro para os seios, depois para as pernas esguias.
Os joelhos de Silécio brilhavam ao calor. O seu queixo parecia mais
agudo que nos outros dias. O cabelo cortado à escovinha
assemelhava-se a uma miniatura do tapete de corda.
Mireu
desviou o olhar surpreendido para um carrinho de mão que Silécio
desta vez trouxera. Braços de madeira escurecidos pelo sol, duas
pernas curtas e rijas, desajeitada no eixo a roda envolta em borracha
apodrecida, matéria porosa com borbulhas que nunca desapareceram com
a idade, antes se foram sempre dilatando. Frinchas abertas pelo calor
e pregos ferrugentos, que Mireu sentiu acariciarem-lhe
inesperadamente a memória.
Na
cidade, as ruas silenciosas, depenadas, por
entre a abundância de cadáveres e lixo. Não havia maneira de a
maré vazar. Quem diria que as marés haviam de perturbar de tal
forma o mundo? Por quanto tempo se prolongaria aquela situação
abrasadora?
Mireu
pensou que devia estar com febre, provavelmente provocada pelo
nevoeiro e pelos insuportáveis tempos de calor que asfixiavam a
cidade. Afagou com as mãos trémulas os vimes entrelaçados da
cadeira mole. Entretinha-se a enxugar os ombros molhados de
transpiração com a ponta dos dedos delicadamente grossos,
lambendo-os depois como se para aquecer a língua esbranquiçada.
Mireu
voltou a olhar furtivamente na direcção de Silécio. Envolvia-o um
sentimento obscuro, indefinido. Era como se antes tivesse visto
Silécio em qualquer parte, sem se lembrar onde nem quando. Não
valeria a pena perguntar-lhe. Silécio era mudo ou tentava passar por
tal e limitava-se a fixá-lo com os seus olhos claríssimos. Os olhos
de Silécio eram verdes. Mas não eram verdes como os que
habitualmente se vêem por aí que às vezes se misturam com
castanho, azul ou cinzento. Eram mesmo verdes. Verdes como os de uma
mãe, que nos rouba os maiores segredos e vagueia eternamente dentro
das casas, dos sonhos, dos desejos mais ocultos. Mas Silécio era
diferente de uma mãe, apesar de tudo. O seu mutismo constante dava a
impressão de se estar perante uma montanha de gelo. Silécio tinha
aquela segurança que dói como uma forquilha na garganta. Porém,
atravessava, por vezes, os quartos da casa, percorrendo-os em todos
os sentidos possíveis e imaginários, gesticulando febrilmente,
batendo os pés no chão sem que se ouvisse qualquer ruído,
humedecendo os dedos no suor que lhe corria dos ombros e esfregando
as mãos entre as pernas, como se se masturbasse, em grandes
passadas, através da casa.
O
corpo de Silécio praticamente não fazia
sombra, tal a sua volatilidade, mas a sua pele brilhava nos pulsos,
braços, pescoço, ombros.
Na
presença de Silécio, Mireu perdia todas as certezas. E até
esquecia os princípios em que fora rigidamente educado. Pensou que
houvesse um secreto conluio entre Arueta e Silécio. Ela mudara muito
nos últimos tempos e ele aparecia agora lá por casa mais do que
nunca.
Mesmo
quando Silécio se sumia sorrateiramente
depois de uma visita prolongada, Mireu sentia grandes dificuldades em
recuperar terreno, em ganhar a costumada segurança interior. Via-se
grego para de novo formular opiniões claras sobre as coisas e as
pessoas, achava-se muito esquecido, quase tonto como o velho Terrez.
Depois
da conversa que tivera com Arueta, os objectos tinham voltado às
suas habituais posições fixas dentro de casa. De qualquer maneira,
era possível que houvesse alguma combinação entre Arueta e Silécio
para o impedirem de raciocinar com lógica. Quer Silécio vagueasse,
ou não, pela casa, quer Arueta estivesse com ele ou ausente, Mireu
sentia-se, ao fim e ao cabo, deprimido, em baixo, destruído, como se
nem um minuto da sua vida tivesse valido a pena. Tudo parecia estar
articulado para o aniquilar. A maré teimava em não vazar. O cheiro
a galinhas assadas nos esgotos. Os dias de poeira e da cor de
chocolate. O parque infantil cheio de roupas só com ar por dentro
num festim macabro. O gato eriçado perseguindo Arueta pelas janelas
da casa. Os três homens monstruosos que procuravam abrigo da
tempestade que parecia ter mudado o natural rumo das coisas. Tudo
aquilo podia ser um plano arquitectado por Silécio para o confundir,
para o liquidar lentamente, para o destruir de forma metódica e
implacável, nem que para tal tivesse que o levar à loucura.
Por
outro lado, Silécio recordava-lhe a mãe,
uma associação psicológica que não deixava de ter o seu
significado. Porém, a mãe não poderia desejar o seu mal. Bem pelo
contrário.
Então,
Mireu hesitava. Talvez não houvesse qualquer plano para o
destruírem. Talvez não passasse tudo de uma ficção construída
por ele mesmo. Podia aquilo ser algo que de momento ele não atingia.
Estava a tornar-se muito desconfiado. Excessivamente.
A
partir daí, Mireu decidiu ser mais arguto
e preciso nos seus raciocínios e análises. Decidiu não perder a
calma.
Onde
estaria Arueta?, interrogou-se, olhando em volta. Ela desaparecia de
repente. E essa era uma das razões por que tinha dúvidas. Arueta
assemelhava-se a Silécio em muitos aspectos, conforme Mireu se ia
dando cada vez mais conta.
–
Estou
a ser comido pelas costas – disse Mireu em voz alta, embora sabendo
que ninguém o ouvia. – Silécio anda com muito influência junto
de Arueta. Tenho a impressão de que vou acabar os meus dias sozinho
–. Estava visivelmente abatido, quase a desconjuntar-se como uma
porta de casa depois da passagem de um vendaval. Pôs-se de novo a
apalpar as pernas, os músculos. Dobrava os joelhos, repetidamente.
–
Pensar
é uma chatice – afirmou Mireu para consigo mesmo. – Porque não
dei abrigo aos fulanos que me apareceram aqui agoniados? De qualquer
forma, tenho a certeza de que não os matei. Já quase nem
respiravam, os pobres. Eles próprios confessaram o estado lastimável
em que se encontravam. Foram as moscas que os assaltaram no pátio,
confundindo-os com cadáveres andantes, muito possivelmente. Não
sinto remorsos. Julgo que perdi o sentido da moral. É um progresso
esquisito da minha parte. Assim, sou levado a entender o mundo de
modo diferente. Sou um pateta. Comporto-me como se tudo girasse à
volta dos meus raciocínios. Não saio de casa porque tenho medo de
ser assaltado pelas moscas que, decerto, me haviam de confundir com
um cadáver. Receio ver com os meus próprios olhos ao que o mundo
chegou. E nós que pensávamos ter tudo na mão! Será que estou a
delirar? Tento perceber tudo à última hora. Seria assim se não
tivesse acontecido esta tempestade? Pensarei desta maneira por saber
que só tenho reservas de ar para mais uns dias? Resta-me acalentar a
esperança de que tudo se resolva de um momento para o outro, que
apareça um Messias qualquer e volte a pôr as coisas no lugar certo.
Estou a ser cobarde, apegando-me a um mito, ao desconhecido, ao medo,
ao infortúnio. Tornei-me um oportunista de primeira grandeza. Não
mereço estar com Arueta. Não mereço mesmo.
Mireu
estava lívido e secava por todos os poros. Mas ainda teve forças
para exclamar que era preciso resolver aquela situação de uma vez
para sempre.
–
Ou
se vive ou se morre! – decretou Mireu, como se tivesse necessidade
de esclarecer algumas dúvidas consigo próprio. – Os pés
continuam a inchar-me. Não sei onde isto vai dar. Já vi as coisas
mais bem encaminhadas. Vou deixar de acreditar em tudo o que para aí
se diz. Silécio não passa de um frustrado que pretende assustar-me
com a sua muda arrogância. Esta tempestade não faz sentido.
Representa uma mudança qualitativa aberrante. É impossível. A
situação tem de voltar ao que era dantes.
Mireu
levantou-se e dirigiu-se para a janela que dava para o pátio. Nuvens
de bronze acumulavam-se ameaçadoras sobre as casas em decomposição.
Os caixilhos das janelas apodrecendo. As paredes esventradas. Uma
aterradora ausência de cores na paisagem. As moscas formando novelos
de raiva por entre a poeira. As rãs acocoradas, silenciosas, sobre o
tejadilho do automóvel alaranjado de velhice. As rãs que outrora
lhe alegravam as noites, agonizando, naturalmente, engolindo o calor
e a tarde sem um pio.
15
Terrez
prendeu uma pedra no extremo da corda e agitou-a em círculos cada
vez mais rápidos, até se perder de vista a pedra, que lhe rodava
como uma hélice à volta do braço rijo. Depois, abriu a mão,
fazendo a pedra subir como um cometa por entre as folhas da árvore
gigantesca.
Artujo
olhava de boca aberta como se não pudesse prever o que aconteceria a
seguir.
Pois
bem, a pedra parou lá no alto como uma cabeça de serpente e
a corda contorceu-se indecisa.
A
pedra caiu em vertical pelo outro lado da árvore, enquanto a corda
balouçava como uma serpente moribunda de cabeça perdida e Terrez a
segurava pela cauda, dizendo: “Já está!, é só mais um
bocadinho, vês Artujo?, assim é que se faz uma retouça!”
Depois
de se ter safado da pedra, Terrez uniu os
dois extremos da corda, ajeitou uma almofada velha na dobra inferior
do enorme colar dependurado da árvore e lá sentou Artujo, que
estava transido de medo.
Terrez
agarrou Artujo fortemente pela cintura, retesou os músculos e
atirou-os bruscamente para fora de si, para longe, como se estivesse
o Diabo sentado na retouça.
Artujo
subiu, subiu, com as duas mãos coladas às cordas trementes de
susto. Despenteado pela aragem repentina, aquilo era um relâmpago no
seu coração de galinha, um Inverno de fogo sobre os seus rins.
Muito pálido, Artujo subia, subia, como a pedra antes arremessada
por Terrez. Parecia uma pedra perdida nas alturas.
Chegada
a retouça lá muito acima, Artujo
deteve-se por uns segundos, sempre imitando a pedra, e disse para si
mesmo: “Se isto rebenta, estou feito”.
Parecendo
ouvi-lo, a corda desceu vertiginosamente como um pêndulo trazendo
Artujo às cavalitas. “Que ventania é esta?”, pensou Artujo.
Aquilo era como levar choques eléctricos e ter canivetes enfiados no
umbigo. As orelhas de Artujo eram duas pequenas hélices que não
paravam de rodar, fazendo andar o baloiço. De outro modo não
poderia ser porque Terrez não gozava assim de tanta força e saúde.
Quando
Artujo passou em baixo, esticou as pernas
numa tentativa de travar o movimento endiabrado da corda, mas Terrez
aproximou-se e empurrou-o de novo para as alturas da árvore, rindo e
dizendo que não o deixaria parar mais, enquanto batia nos joelhos
com as mãos grossas e acrescentava, vociferando: “Vês como
gostas? Estas coisas são assim…”.
Artujo
olhava para baixo e Terrez parecia-lhe um anão dotado de uma força
descomunal que o fazia levantar voo para lá de todos medos.
“Ele
está a ver se me assusta”, pensou Artujo. “Vou fechar os olhos
para não cair. Se a minha mãe me visse aqui ainda ia pensar outras
coisas”.
Artujo
gritou que não queria mais, suplicou a Terrez que parasse e ameaçou
que não falava mais com ele.
“Da
próxima, ainda vai ser mais forte”, disse Terrez para si mesmo.
“Hei-de vê-lo ultrapassar a ramagem da árvore e talvez o faça
desaparecer de vez! Tudo é possível”.
Quando
Artujo passou por ele com a velocidade de uma ave em queda depois do
tiro, Terrez deu-lhe o maior safanão que as suas forças permitiam,
a corda rangeu e Artujo subiu por entre a folhagem rogando pragas em
direcção às nuvens.
E
Terrez rezava: “Leva-o Senhor, leva-o contigo”.
Artujo
desapareceu por entre os ramos agitados da árvore, deixando a corda
a balouçar sozinha, e o que se seguiu foi um grande silêncio no
entardecer, como se tivesse havido uma morte. O mais certo, contudo,
era Artujo ter conseguido agarrar-se a um galho e arranjado um
poleiro algures, assim evitando uma queda desastrada.
Terrez,
porém, esfregou as mãos de contente, pensando que nem tão cedo
veria Artujo de volta. Regressou a casa e disse para Zava:
–
Estou
com fome. Traz-me sardinhas e vinho doce.
–
Onde
está Artujo? – perguntou Zava.
–
Foi
apanhar umas laranjas – respondeu Terrez bem humorado.
Artujo
regressou horas mais tarde, numa altura em que Terrez tinha saído.
Foi procurar Zava e encontrou-a pensativa sentada à mesa da cozinha.
Abraçou-se-lhe ao pescoço, mordiscou-lhe a orelha.
–
Vamos
agora! – disse Zava. – Hoje, ele virá mais tarde do que o
costume.
Zava
e Artujo foram para uma das arrecadações da casa e deitaram-se
sobre uns sacos de farinha.
–
Ensina-me
as coisas que Luana te faz – pediu Zava.
Artujo
assim fez e Zava correspondeu como se já tivesse grande experiência
na matéria. Até custava a acreditar. “Que confusão”, pensou
Artujo. Uma mulher na casa dos quarenta a pedir que ele lhe ensinasse
coisas. Zava fora mãe de quatro filhas e todas elas bonitas de
morrer. “Se Terrez soubesse disto…”, cogitava Artujo para os
seus botões, “matava-me… já se vê”.
Mas
Artujo tinha a ideia de que o velho era
ingénuo. “Se calhar, pensa que se livrou de mim empurrando-me com
toda aquela força no balouço. Imagino a cara dele quando eu lhe
aparecer pela frente como se nada tivesse acontecido”.
16
Com
o calor, algumas traves de madeira começaram a desprender-se do
tecto. Mireu acorria angustiado, tentando
apará-las na queda. Vivia em constantes sobressaltos, à espera de
que a próxima viga desabasse, trazendo consigo flocos espantados de
cal ressequida. Ouvia-se a poeira estalar de secura no telhado.
À
medida que caíam, as traves eram amontoadas junto à parede onde
estava encostada a bicicleta enferrujada. Mais tarde, Mireu decidiu
cortar as vigas pela altura do quarto, a fim de as erguer como
colunas improvisadas, não fosse o tecto desabar na totalidade e ele
ficar inesperadamente soterrado.
Mireu
trouxe o serrote e pôs-se a cortar as traves pelo tamanho rigoroso
da altura do quarto. Forçava o músculo e enterrava na madeira a
lâmina metálica de dentes aguçados. A certa altura, parou, gelado
pela ideia de que aquela trave podia muito bem ser uma perna ou um
braço humanos. Era o que fazia lembrar o ruído provocado pelo corte
da lâmina na madeira. O pó da serradura que saltava era exactamente
da cor da sua pele.
Aterrorizado,
Mireu não se mexeu de onde estava. Olhou
de soslaio para a cadeira de vimes. Imaginou Silécio arroxeado de
cólera, Terrez a puxar os próprios cabelos e a gritar de fome na
cozinha. “Muito comia aquele Terrez”, pensou Mireu no preciso
momento em que o candeeiro de pinho se apagou, deixando-o sozinho à
luz do crepúsculo.
Ouviu-se
música de uma estação de rádio no quarto ao lado. “Quem
seria?”, interrogou-se Mireu. Depois, ouviu-se um barulho de unhas
a arranhar numa parede.
Mireu
levou as mãos à cabeça e abanou-a loucamente, não podendo
controlar o sentimento que o agitava. Foi à cozinha e bateu com a
testa no frigorífico.
Na
casa, ouviram-se ruídos vindos do exterior. Mais poeira a estalar.
Mireu voltou ao ponto inicial. Tomou o serrote na mão decidida e
imobilizou a trave com o pé esquerdo. Não fora assim e – quem
sabe? – a trave pôr-se-ia em fuga, em andamento, como uma pessoa
qualquer que não soubesse onde estava nem para onde ia.
Silécio
apareceu. Foi direito ao aquário. Pegou-lhe com as mãos peludas e
bebeu de um gole toda a água que continha, deixando os peixes a
saltitar tresloucadamente por dentro do vidro. A seguir, enterrou os
peixes na bocarra húmida, fazendo-os sumir para lá dos dentes
alinhados e brancos.
Mireu
não reagiu. Não disse palavra. Firmou a mão no serrote e serrou,
serrou, fosse uma perna humana ou uma trave de madeira. Cortou todas
as traves em pedaços. A serradura caía das feridas da madeira para
o chão com a suavidade dos primeiros nevões lá para Novembro.
Mireu
trouxe pregos e martelo. Uniu duas traves pela cabeça e bateu com o
martelo no crânio metálico do prego. Enterrou-o fundo na madeira e
foi unindo as outras traves por aí fora, uma a uma, nos pés,
braços, ancas. Enterrava pregos nos mamilos da madeira, nos olhos,
um prego em cada dedo das mãos, um prego em cada dedo dos pés, nos
joelhos. Espetou pregos nas orelhas das traves, abriu-lhes as bocas
secas e atirou-lhes mãos cheias de pregos pelas gargantas abaixo.
Mireu
continuava a ver corpos humanos nas traves endurecidas pela violência
inesperada. Enfiou um prego no umbigo da trave que tinha na mão. No
meio do quarto, havia um monte de vigas cruzadas apontando para todas
as direcções do mundo, caso prolongássemos as suas linhas
imaginárias até ao infinito.
Mireu
batia, batia com o martelo nas cabeças reluzentes dos pregos. Alguns
entortavam-se, mas ele dava com mais força nos outros, espetando-os
de qualquer maneira.
“Foi
assim que os americanos fizeram”, pensou Mireu, “enquanto a
vítima gritava, suplicando por piedade”.
–
Eu
sou um líder – gritava o homem – sou um verdadeiro líder,
acreditem.
E
eles sempre a dar-lhe sem ligar às suas palavras.
–
Perdoai-lhes,
perdoai-lhes – implorava o moribundo sob as chicotadas, enquanto
Mireu recordava que esse tal líder, que dava pelo vulgar nome de
Billy, devia assemelhar-se a algum desses raquíticos vagabundos de
barbicha, que fumam haxixe, têm borbulhas na cara e se inibem na
cama.
Enquanto
Billy soltava os últimos gemidos, surgiu da sombra alguém que
disse:
–
Vai
lamentar-te para outro lado, Billy! Estamos fartos de ti. Afinal, só
nos vieste prejudicar a vida. Quem te mandou armares em líder por
aí, falando de coisas que ninguém entendia? O que tu querias era
tramar-nos. E vens agora falar de perdão. Perdão uma ova! És a
vergonha do nosso bairro.
Uma
mulher que aparentava conhecer Billy aproximou-se do lugar onde o
matavam e ajoelhando junto aos seus pés ensanguentados contorcia-se
de lágrimas pela visão daquela morte singular.
–
Deixa-me
morrer em paz – pediu Billy, revirando os olhos de agonia. – As
tuas lágrimas já não vêm a tempo. Restam-me poucos minutos. Não
sei que vim fazer a este mundo. Sinto o corpo em chama. Afasta de mim
esta tentação…
Billy
desprendeu um dos pés da trave, fazendo saltar o prego ensanguentado
sobre a terra e afastou a mulher que o viera consolar
nos últimos instantes, dizendo:
–
Vai
Stephanie, volta para casa e faz o que puderes por aqueles que eu
abandonei. Pede-lhes que me perdoem.
Depois,
Billy chamou Michael e pediu:
–
Acaba
comigo de vez!
Um
homem saiu da multidão que assistia à morte do líder. Era Mike.
Pediu a muleta emprestada a um coxo que por ali andava e,
aproximando-se de Billy, espancou-o vigorosamente.
Billy
contorceu-se e murmurou umas palavras cujo sentido se perdeu nos ecos
da tarde. A um gesto do líder, Mike voltou
a agredi-lo, com toda a força e determinação de que era capaz.
Antes
de expirar, Billy ainda conseguiu exclamar:
–
Deus
te pague, Mike.
O
sol brilhava nas encostas e um dos amigos de Billy, abeirando-se de
um guarda, apressou-se a desabafar:
–
Deste
já nos safámos.
Mireu
atirou o martelo à queima-roupa contra Silécio, que o aparou com
destreza e o fitou com ar interrogativo. Mireu espalhou então os
pregos que sobravam pelos cantos da casa. Quis serrar mais. Golpeou o
indicador esquerdo. Praguejou e atirou o serrote na direcção de
Silécio, que se desviou a tempo, o apanhou e desfez em pedaços,
como se se preparasse para o comer à refeição.
Arueta
entrou nesse momento, ferindo a carne fresca dos pés com os pregos
que tinham ficado espalhados pelo soalho. Saltou para o pescoço de
Mireu e beijou-o repetidamente.
–
Nem
tudo está perdido – disse ela. – Em breve, a maré há-de vazar.
Alguém virá socorrer-nos.
Deitaram-se
os dois entre os lençóis revoltos e Mireu correspondeu aos beijos
dela com raiva e ardor. Os seios de Arueta cresciam notoriamente de
dia para dia. Fizeram amor. Adormeceram com os sexos unidos, colados
por uma goma branca, uma espécie de lã de que se desprendia da vida
como de uma ovelha.
17
Nas
escadas que davam para a cave, Artujo costumava anichar-se e vigiar
os movimentos de Nícora que lavava a roupa no tanque. Tinham passado
muitos anos, mas ele recordava-se como se tivesse acontecido minutos
antes. Mirava as convulsões da água azulada pelo anil, a espuma
formando colinas brancas como o leite a ferver. O sabão salivava nas
reentrâncias da pedra e o odor a músculos que o alcançava através
das escadas plantava-se misterioso a seu lado como se chegado do
interior de bolas coloridas transparentes que explodiam à porta da
sua boca aflita de surpresa.
Nícora
saía da cave e Artujo era obrigado a esconder-se no escuro que
ficava por detrás de uma caixa de papelão. Ela transportava a roupa
espremida e amontoada nos braços, contra os seios, em direcção ao
fio, onde estendia as camisas e toalhas dançando ao sol como
bandeiras de navios no alto mar. Peça por peça, Nícora desdobrava,
sacudia as vestes molhadas e dependurava-as no arame. Os lenços, as
calças, os blusões ficavam derramando água sobre o chão numa
agonia que se prolongava pela tarde inteira.
Nícora
voltava para o tanque e continuava a esfregar, espremer roupa contra
a pedra agreste. A respiração de Artujo corria num triciclo sobre
uma aresta de muro. Lavando a roupa, Nícora parecia um enorme fole
de carne a esguichar espuma pelos bicos dos seios. A sua saia tremia
como um pano vermelho nas mãos do toureiro, deixando ver as pernas
retesadas e brancas. Os pés de Nícora acendiam-se sobre um pequeno
estrado de madeira e a cintura abria-se em movimentos apetecíveis
entre a camisa e a saia, deixando à mostra os rins, as ancas
irrequietas.
Artujo
esfregava os olhos como quem mastiga azeitonas picantes e observava
as pernas, acessíveis e distantes, de Nícora, balouçando-se à sua
frente. Artujo pensava que o corpo de Nícora era um clarinete que
soltava sons agudos para embalar a cidade e o mundo.
Ao
fim da tarde, Nícora já tinha lavado a
roupa toda. Do seu corpo, desprendia-se um cheiro a suor e anil.
Nícora despia então a camisa e punha-se a lavá-la, expondo os
seios estonteados que alegravam a água com os seus reflexos. Depois,
tirava a saia e lavava-a também. Ficava completamente nua, debruçada
sobre o tanque, lavando a roupa escurecida de cansaço.
Olhando
para as nádegas brancas de Nícora, Artujo sentia o coração parar.
“Que bolos esquisitos”, pensava. “Ainda nem sequer foram a
cozer ao forno. Nunca imaginei que Nícora fosse tão volumosa.
Sempre que fomos para a cama, ela tinha o hábito de apagar a luz”.
Aquela era a primeira vez que Nícora se despia à sua frente. “Não
me sinto bem”, disse Artujo baixinho para si mesmo. “Os seios de
Nícora são bastante maiores do que eu pensava. Fiquei com uma
impressão errada, por me sentar neles às escuras. Os seus cabelos
negros contrastam com a brancura da pele. Se alguém soubesse disto,
não acreditava. Da próxima vez que formos para a cama, vou acender
a luz sem ela contar. Quero deitar-me sobre o corpo de Nícora, vendo
bem as colinas sobre as quais me rebolo e gozo que nem um peixe na
fundura das águas”.
Artujo
empalideceu como já vinha sendo habitual desde que viera a
tempestade. Com a ponta dos dedos, tocou no peito, no lugar do
coração, fechou os olhos com o cuidado de quem fecha um canivete e
desmaiou.
18
Luana
vivia num quarto onde as vítreas sombras fixas ondulavam; os dedos,
os olhos, as bocas tomavam proporções gigantescas e a vida
resumia-se à dimensão de um mosquito zumbindo no escuro invisível.
“É
uma maneira de o ventre dilatar na presença de quem se anuncia”,
pensou Luana por entre as sombras que a cobriam. “Diz-se adeus por
entre o fumo e o nevoeiro. Cria-se um ângulo de desejo com o nosso
desaparecimento, que o intensifica, controlando-o de longe, fora de
nós. Este quarto é o único lugar onde se pode sobreviver sem estar
preso a um corpo. A criação do primeiro ângulo leva-nos à procura
das formas cúbicas. O corpo endurece e, a dada altura, o que dizemos
parece vindo de uns lábios metálicos. Os meus lábios são carnudos
e tenros. O que digo ou penso resume-se a um processo abstracto
através do qual nos vamos conhecendo melhor e só assim se pode ser
levado a entender e amar com mais força. Os lábios metálicos são
formados por um incalculável número de arestas macias de encontro
às quais se limam as palavras antes de virem ao mundo. Durante muito
tempo, vivi agarrada aos suspensórios de Mireu. Foi tempo perdido,
claro. O meu ventre é mais forte do que o vidro e em vez de sangue
tem lá dentro sumo de cereja. Por que motivo me não havia de despir
onde muito bem quisesse e entendesse para me distanciar das pessoas
como convém? Podem dizer que escandalizo, é verdade. Mas isso
fez-me sentir viva e ter a certeza de que não me conformo. Quando
estou nua, as minhas formas acentuam-se nas sombras que a ausência
de luz projecta no quarto. Os mamilos vistos através do tecido
parecem dois rebuçados endurecidos. Vou ter oito filhos. Só posso
ter oito filhos. Não admito outro número. Oito. Uns a seguir aos
outros. Ando sempre contra a corrente. Não gosto que me confundam
com multidões. O meu desejo é o fogo a latejar. Não é exagero. É
o significado que encontro na vida. Recuso-me a ter os braços
gordos, as pernas com varizes e a pele enrugada. Quero fazer resina
batendo a saliva contra as gengivas, o que me permitirá exercitar os
músculos da face para outros fins. Quando a terra era sumarenta, as
gargantas humedeciam e cantavam. Agora, não. Tudo secou, tudo
mirrou. Como não tenho cavidades dentárias, não corro o perigo de
a saliva formar lagoas na minha boca. Não me preocupo em carregar de
lógica o meu discurso. Esta é uma postura que se aprende depois de
se viver algum tempo no quarto das sombras onde me abrigo. Não
duvido que, ao proceder assim, desperto nos homens uma atracção
incontrolável. Sou eu que afasto o odor nauseabundo a petróleo das
suas vidas atormentadas, sou eu que transformo em mel o ardume dos
seus olhos. A tempestade que se abateu sobre a cidade é um problema
sem importância. A vibração dos corpos é sinal de que há vida. A
agonia de que fala Mireu não passa de uma ideia movida pelo excesso
de desespero provocado pela minha ausência. Um dia, tudo há-de
mudar. Um dia, reaparecerei na vida de Mireu e devolver-lhe-ei a
alegria. Há algum tempo, vi-o passar a poucos metros de distância
do sítio onde me encontrava. Ia triste como um foguetão que
transporta o peso de não ter a certeza do rumo nem do regresso.
Mireu olhou na minha direcção e confesso que não fui capaz de
conter o riso tal era o pavor que lhe vi estampado na face. Ele nem
sonha onde me encontro neste momento. Não tenho prazer em ver Mireu
sofrer, mas julgo necessária esta ausência, para que um dia –
sabe-se lá quando – possamos sonhar com um saudável regresso ao
amor. Além do mais, é difícil esquecer as cicatrizes que deixou no
meu coração. Mireu preocupa-se em ostentar um rosto de pedra só
por não suportar o calor que lhe corrói a alma. Mireu tenta imitar
Silécio, por isso há entre os dois aquele ódio tão grande. Um
ódio que pode ser amor, vistas as coisas por outro prisma. No fundo,
Silécio é o tipo de pessoa que muitos gostariam de ser e é isso
que mais chateia quem o conhece. Hoje, tomarei duche. Não gosto de
ver estas pitadas de mel nas minhas pernas. Quando penso em Mireu
vem-me logo à ideia um tronco de árvore. Ele seria o tronco e eu os
ramos, as folhas. Por aqui se nota que o meu conservadorismo se
mantém intacto. Não preciso de procurar Mireu. Ele deseja-me e,
apesar disso, não me procura. Por enquanto, é suficiente sabermos
da existência um do outro. Sem dúvida que a tempestade tem
contribuído para o desespero de Mireu. Mas não sou ciumenta. Vi
Mireu na cama com Arueta e com Zava. A terra é o meu coração. Digo
estas coisas para que não restem ilusões. Como salta à vista, o
meu rosto tem a cor do luar. Por isso me chamam Luana. Ninguém se
cansa de me alimentar na sua memória. Mantenho-me jovem. Uma
verdadeira mulher não envelhece. Não sou um mito. Só quero evitar
o sofrimento. Mas não desejo apenas o prazer. A minha função é
ligar a noite e o dia, o sofrimento e o prazer. Gosto de brincar com
os sentimentos, saltando do prazer para a dor e da dor para o prazer,
conforme um ou outro me agrada menos ou mais. Como sei que prazer e
dor partem do mesmo ponto, não chego a entregar-me totalmente. Tomo
consciência do que está a acontecer e encurto ou prolongo a
sensação segundo me dá na gana. A vida resume-se ao movimento dos
músculos. Faz bem procurar zonas iluminadas, sobretudo quando já
estamos cheios de alguma luz. Serve para desentorpecer as
articulações. Agora que o sol deixou de nascer por detrás dos
edifícios que se erguem à frente dos montes já não se ouve o
canto dos grilos nem se adivinha o sonho dos cães. A falta de chuva
terá consequências ruinosas para a cidade. As vidraças das janelas
hão-de rebentar. Pouco me falta para estar apta a encontrar-me com
Mireu. Da parte dele, não espero muito. A tempestade vai minando as
suas forças e creio que, em vez de tentar agir, de tentar reagir,
acabará por sucumbir no meio de toda a confusão em que se meteu. E
o mesmo acontecerá a Terrez, Arueta, Artujo, Silécio, um nunca mais
acabar de gente. Reaparecerei na altura certa. Antes que as lágrimas
rebentem nos olhos de Mireu e lhe corroam a face”.
19
–
A
morte – disse o velho Terrez – a morte não existe. Que é isso
de morte? Não vês que só estamos aqui e mais nada? Não podemos
falar de coisas que não conhecemos e pelas quais nunca passámos.
Estão sempre a falar de morte. Não és o único, podes crer. Também
me contaram essas histórias, mas só em criança as engolia. Então
não topas que isto é como a lenda de Deus que, de tanto nos
massacrarem a cabeça com ela, acabamos tarde ou cedo por deixar de
acreditar nela? Ora essa, Artujo. Andas então à rasca com o
problema da morte. Olha que sou velho, mas estou-me borrifando para a
morte. A morte nunca vem, sabes? É como se tivesse medo de mim.
Comigo não consegue ela nada. Mas a morte não podia mesmo vir
porque não há morte coisa nenhuma. A morte é uma cantilena para
enganar papalvos. Lixaram-te o coração e aí estás feito em
farinha, meu querido. Vou dizer-te uma coisa que nunca disse a
ninguém. Fica um assunto só entre nós. Digo-to porque és um miúdo
às direitas. Como já deves ter notado, não há quem não acredite
na morte. E muita gente vive em pânico com a ideia de um dia vir a
morrer. Até os mais inteligentes se deixam levar. É um caso bicudo.
Os próprios ateus têm medo da morte porque sabem que nada existe
para além dela. Os crentes, esses acham que acabarão por encontrar
algo de sublime, o que é uma tolice, mas deste modo atenuam o medo
do fim, o medo da morte, e vão-se aguentando nas canelas. Por outro
lado, não deixam de viver aterrorizados, quando pensam que um dia
hão-de morrer porque, crendo na existência de um Deus deixam-se
aterrorizar pela ideia de comparecer no juízo final. Temem o
Inferno. Concebem Deus como um remeloso de barbas sentado sobre as
nuvens, intransigente, teimoso, estúpido, incompetente, tarouco e
por aí fora. Não podia ter havido maior trapaça. Foram todos
domesticados, como vês. Até aqui nada de novo e se calhar até já
sabes o segredo que te vou contar ou talvez já o tenhas sentido, por
que estas coisas são como os pressentimentos ou os sonhos. A gente
às vezes sabe pensando que não sabe, tem um medo oculto de
reconhecer as coisas. Os padres são uns mafarricos, digo-te eu. Pode
não vir a propósito, mas é a verdade. Há padres por toda a parte,
inclusivamente entre os leigos. O sacerdócio entra nos miolos como
um bicho, um micróbio nefasto e destruidor. Há gente que, ao casar,
não faz mais do que tornar-se padre de forma encapotada. São uns
desajeitados na cama. Resolvem o assunto em dez minutos. Vivendo toda
a vida com a mesma mulher só conseguem realizar-se pensando que
estão nos braços de uma estrela de cinema. Estas coisas são mesmo
assim. Não se deve fazer sexo com a mesma pessoa toda a vida, mas os
que arranjam amantes só pretendem marcar terreno junto dos amigos
porque ao deitarem-se com as amantes nunca deixam de pensar nas
esposas! É tudo uma falsidade, uma cobardia. Estou a fugir ao
assunto que pretendia analisar. Estava a falar da morte, não era? O
sexo tem a ver com farsa da morte, embora pareça que não. Os tipos
de muita garganta sabem que ao fim de uns anos de vida verão
reduzido o seu poder e sabem também que depois disso lhes vai
acontecer algo a que chamam morte. Por isso, há muita gente que faz
sexo só para se convencer de que a morte ainda vem longe. Há quem
vá aos funerais e pense que isso da morte não é para ele, que
ainda mexe na cama como um jovem de quinze anos. As estrelas de
cinema, afinal, são gente vulgar. Todavia, as pessoas deixam-se
encantar por elas porque a imagem da morte é mais atenuada nas suas
vidas enfeitadas de magia. Aprendi tudo o que sei na prática dos
dias. Vamos então ao caso da morte. Apesar da minha idade, ainda
hoje tenho muito poder. Poder mesmo, entendes? Pergunta a quem me
conheça bem. A tempestade que varreu a cidade não deu cabo de uma
única vida. O que aconteceu foi que o calor pôs toda a gente em
estado de agonia. Ouvi o que aqueles três monstros disseram a Mireu
e percebi tudo. A agonia é que é, Artujo. Depois dela, já não
somos nós. Quando alguém morre, não somos nós que morremos. Só
éramos nós quando estávamos em agonia. Tudo acaba na agonia. A
febre e o calor estão sempre presentes na agonia. As pessoas
precisam de calor, de carinho. A agonia é o auge desse desejo, a sua
realização máxima. Não surge de um momento para o outro.
Arrasta-se desde lá muito de trás da nossa vida. Mas há alguns
safados que nos obrigam a coisas que em nada nos dizem respeito, como
o trabalho. Assim antecipam a nossa agonia derradeira. Por isso se
vendem por aí caixões aveludados e cómodos. Fazem-se caixões
muito bem acabados e antigamente até levavam comida para os túmulos
que era para os mortos se alimentarem. Já nessa altura se sabia que
os mortos não estavam mortos. Hoje, não se leva comida para os
cemitérios, mas leva-se flores e prantos que é para os agonizantes
se sentirem felizes com a festa da dor. É para lhes suavizar a
febre. Não se pode saber o momento exacto em que termina a agonia,
meu caro Artujo. Assim como não se sabe quando ela começa. Há por
aí muita gentinha nova que está mais à rasca do que eu, os que se
embebedam e fumam marijuana. O que desejam, no fundo, é ternura, meu
velho, calor para as suas almas. Querem as altas temperaturas
próprias da agonia. A agonia pode ir e vir conforme as
circunstâncias. Já tive grandes agonias na vida. Foi aí que
entendi tudo. Queriam eles que eu não percebesse. Não reveles a
ninguém este segredo que te acabo de contar, para que não me chamem
doido varrido. Hoje em dia, é arriscado afirmar que a morte não
existe. Tenho medo de acabar os meus dias num hospital psiquiátrico.
Quando a derradeira agonia é artificial, Artujo, quando é
provocada, a situação torna-se feia, nada saborosa, desde já te
digo. Pode ser mesmo complicado. Nesse caso, vamos ainda mais
quentinhos para a cova. Talvez demais, quem sabe? Nos funerais, os
corpos vão cheios de calor dentro do caixão. Vão a arder. É um
conforto imenso. Olha que já passei pela experiência. Numa das
minhas agonias, chegaram a pôr-me dentro de um caixão. Rezaram e
gritaram que foi uma doidice. Quando vi que a minha agonia estava a
ser um exagero, decidi levantar-me, ir-me embora. Calhou que ninguém
estava presente na altura em que o fiz. Tinham ido todos tomar café,
respirar, conversar para o exterior da capela onde me velavam. Vê o
amor que essa gente me tinha. O que sei, Artujo, é que não podemos
falar da morte porque não a sentimos. Por isso digo que a gente não
morre. Logo a seguir à agonia, vem a decomposição dos corpos e
então a matéria de que somos formados serve de alimento aos vermes,
à bicheza da terra, aos pássaros, insectos e flores. Assim, somos
possuídos na totalidade, que é o nosso maior desejo em vida. Só é
pena que não nos seja possível ter uma percepção imediata e
directa desse instante. Mas não se pode ter tudo, Artujo, luz dos
meus olhos, e aqui vem de novo o sexo a propósito. Quando se faz
amor com outra pessoa fica-se quente, cheio de febre, e deseja-se
entrar no outro completamente. Uma aspiração inútil. A plenitude
do desejo só é pressentida na agonia e realiza-se no processo de
desintegração do corpo, depois de termos escapado a nós próprios
e nos termos dado à terra, ao universo para sempre.
20
Falavam-se
cada vez menos. Arueta sentia que Mireu não tirava os olhos dela,
uma atitude talvez derivada do medo da tempestade. A segurança dele
tinha desaparecido. Mireu construíra uma fachada que ia ruindo a
olhos vistos. Arueta via-lhe os lábios tremendo com frequência e às
vezes até o apanhava a gaguejar, o que lhe acontecia pela primeira
vez.
Mireu
sentava-se na cadeira de vimes, tacteava os músculos, os nervos das
pernas. Arueta assobiava para lhe dar a ideia de que pensava em outra
coisa. Não queria que Mireu enlouquecesse. Arueta sentia que as suas
forças tinham limites. Começava a inquietar-se com os escrúpulos
de Mireu, que estava sempre a mexer nas pernas. Mas nunca constara
que ele corresse o risco de ficar paralítico. A sua circulação de
sangue era perfeita. Mireu era uma pessoa bastante saudável. Como
poderia recear qualquer doença? Era uma depressão, com certeza. Os
dias da cor do chocolate e a poeira eram perturbadores.
“Tenho
de ser mais amiga de Mireu”, pensava Arueta. “Ele precisa de
apoio, sobretudo agora que deixou cair a máscara dos jogos mentais,
cálculos, frases feitas, comparações ridículas”.
Mireu
jamais se habituaria a uma nova maneira de ver o mundo e as coisas.
Não seria capaz de interpretar e entender os novos factores que a
tempestade criara. Arueta adaptava-se com facilidade à nova
situação, ao vendaval sereno que roubava as cores à paisagem e que
havia tirado a vida a quase todos os habitantes da cidade. A
propósito: que se passaria com os sobreviventes?
Arueta
reclinava a cabeça no acalorado vazio da casa. Sentia falta de
alguém que a compreendesse. Mireu não estava em condições disso.
Ela teria de acarretar sozinha a tempestade dentro das almas. Via
Mireu mordiscar o bigode alourado, esfregar as mãos contra os braços
da cadeira de vimes. Agora, até o pescoço massajava e não parava
de mexer os dedos dos pés como quem toca piano no vazio. Os olhos de
Mireu cresciam, inchavam como balões de borracha. Arueta
assustava-se, mas não desejava deixá-lo transparecer. Sentia-se
obrigada a mostrar força, para que as coisas não se precipitassem,
fazendo o mundo descarrilar dentro dos corpos, à semelhança do que
acontecera na cidade. Apetecia-lhe fugir e desaparecer por entre as
casas destruídas. Iria até ao areal para ver quando o sol havia de
atravessar o nevoeiro, as nuvens de bronze. Talvez a maré vazasse à
sua chegada. Recolheria das portas mais alguns bilhetes com os
últimos desejos dos que tinham morrido. Mas não o diria a Mireu,
para evitar que os miolos dele rebentassem. Mireu não andava com
estômago para situações extremas e trágicas.
Mas
Arueta acabou por ficar em casa. Não voltou ao areal. Receando novas
cenas de violência, deixou-se ficar junto de Mireu, que já nem
prestava atenção ao possível desabamento do telhado, o que se
tornava um perigo real para a sobrevivência dos que residiam na
casa. Oxalá Silécio não aparecesse de um momento para o outro, a
fim de evitar que Mireu se irritasse. Arueta chegava a pensar que ele
tinha algum plano para dar cabo de Silécio. Devia estar mais tempo
junto de Mireu e impedir encontros a sós entre os dois.
A
imagem da mãe tinha sido muito forte na vida de Mireu. Por isso, era
compreensível a sua agressividade num momento tão grave como
aquele. Mas esta ideia irritava Arueta. Sentia-se substituída. Mireu
precisava dela, não por amor, mas por um refinado sentimento de
egoísmo, insegurança. Certa vez, Mireu contara-lhe que, em criança,
quando a mãe saía de casa, ele e os irmãos berravam como cordeiros
à vista do diabo, perturbados pela ameaça da ausência dela.
Arueta
ouvia o zunir das moscas no pátio. Recuperava a calma. Serenava as
ideias e as dúvidas. O que acontecera na cidade, por paradoxal que
parecesse, tornava-se um fenómeno relaxante e cómodo. Arueta
antecipava a visão da maré a baixar. Queria voltar a saborear a
espuma das ondas. O nauseabundo cheiro dos esgotos havia de
desaparecer para sempre. As vidraças seriam de novo transparentes e
luzidias. Os telhados das casas reconquistariam as cores fortes e
consoladoras de antes.
Outro
fenómeno que deixava Arueta preocupada era a importância que Mireu
dava às portas e ao seu funcionamento. Encostava-se a elas e passava
horas torneando os puxadores metálicos com as mãos ressequidas.
Arueta sentia que era cada vez mais remota a possibilidade de
conquistar um lugar definitivo no coração de Mireu. Mas nem assim
desanimava. Era necessário aceitar a nova situação e ir ganhando
terreno à estagnação de Mireu. Só não queria ser um remendo para
o egoísmo dele, para os seus traumas, complexos, manias. A apatia de
que Mireu começava a dar sinais inquietantes não era só motivada
pela tempestade. Ao fim e ao cabo, ele não conseguia dar conta de
qualquer recado. O delírio interior era prova disso, O eterno
crepúsculo, o calor. De alguma maneira, havia sido ele o causador de
tamanha tragédia. Não se tratava de uma ocorrência natural. Fora
provocada, estava-se mesmo a ver. Se o pesadelo das reservas de ar se
resolvesse, tudo acabaria por se esclarecer. Se a maré vazasse,
seria perfeitamente possível recomeçar um mundo mais justo que não
proibisse a natural manifestação dos instintos. A tempestade não
era necessariamente uma tragédia. Só era preciso ter coragem e
vontade para entender a vida de outra maneira.
As
moscas haviam de continuar a zunir lá fora, enquanto as rãs se
calavam à espera da noite. Que paciência aquela sobre o tejadilho
do automóvel. O pior de tudo, porém, eram as flores mortas. Arueta
amava as flores, as árvores pálidas e secas. Talvez daí a uns anos
revivessem. Contava chegar à velhice ardentemente e sobre o seu
caixão levar novas flores, outras flores, numa madrugada sem nuvens,
com vento e chuva.
Mireu
interrompeu-a:
–
Achas
que posso perder a virilidade?
Ela
não lhe respondeu e, pondo as dúvidas de lado, ajoelhou-se entre as
pernas dele.
–
Não
vais perder a virilidade, meu querido – enquanto lhe descia o fecho
da braguilha e soprava para dentro da abertura.
21
–
De
quem são aquelas vacas ali a pastar? – perguntou Arueta.
–
São
minhas – respondeu Terrez.
Continuámos
a vencer a estrada, com Terrez muito calado ao volante do automóvel,
só respondendo às perguntas que lhe fazíamos. Arueta e eu
estávamos apertados à sua direita no banco da frente. Arueta abriu
o vidro e deixou que os seus cabelos esvoaçassem naquela tarde fria
de Outono.
–
De
quem são estas searas que nunca acabam? – perguntou Arueta.
Terrez
olhou para a sua direita com o canto do olho, na direcção que
Arueta apontava, e respondeu:
–
São
minhas.
–
E
aquelas árvores ali à frente? – insistiu Arueta.
–
São
minhas – afirmou Terrez com uma gargalhada.
A
viagem estendeu-se por entre caminhos estreitos e tortuosos. De
repente, vimos uma grande casa, com dúzias de janelas, à beira da
estrada.
–
E
esta casa de quem é? – perguntei.
Terrez
olhou para fora, era do seu lado, atirou a ponta do cigarro pela
janela e respondeu, sem hesitar:
–
É
minha.
Arueta
e eu entreolhámo-nos em silêncio e calámo-nos. Uma ratazana
atravessou a estrada. Terrez acelerou, mas era tarde. O rato subiu
uma parede às escaramuças e ficou-se a olhar o automóvel amarelo
em que seguíamos, até desaparecermos na curva. A tarde foi
esmorecendo.
–
Ainda
falta muito tempo para chegarmos? – perguntei.
–
É
já aqui à frente – respondeu Terrez, estendendo o queixo para o
volante.
–
De
quem é aquele rebanho de ovelhas?... – perguntou Arueta.
–
…É
meu – disse Terrez, ainda Arueta não completara a pergunta.
A
Lua já ia alta. O Sol ainda espreitava no
infinito.
–
O
céu está da cor dos olhos de Nícora – disse eu.
Arueta
mudou de conversa:
–
Há
pouco disseste que estávamos quase a chegar, mas, pelos vistos, não
é bem assim...
Terrez
não respondeu. Fumava, como sempre.
–
Parece
que a estrada também está em movimento – disse-me Arueta, em voz
baixa – porque embora o carro se desloque com rapidez nunca
chegamos ao fim da viagem.
–
Nesse
caso, só se o caminho andasse para a frente – disse eu – mas
noto que, pelo contrário, a estrada e as árvores fogem para trás
como se tivessem medo de nós.
–
Então,
já devíamos ter chegado há muito tempo – comentou Arueta. E para
Terrez, manifestamente preocupada: – A estrada também está a
andar, toma cuidado!
–
Não,
a estrada está no seu devido lugar – replicou Terrez. – Está
parada, paradíssima
–
Mas
se o mundo gira sobre o seu eixo – argumentou Arueta – e se este
caminho está assente no globo, o que se conclui é que a estrada
também está em andamento, não é verdade?
–
A
velocidade do mundo é bastante maior do que a do automóvel –
disse Terrez – por isso é perfeitamente viável que alcancemos o
ponto desejado sem qualquer incidente.
–
Então,
estamos a perder tempo – disse eu – porque se o mundo anda assim
tão depressa o lugar que procuramos pode já ter passado por nós
sem que tenhamos dado por isso.
–
Em
que direcção se movimenta o mundo? – perguntou Arueta.
–
Sei
lá! – respondeu Terrez. – O que interessa é que havemos de
chegar, mais tarde ou mais cedo. Já lá fui muitas vezes e nunca
tive problemas.
–
A
que velocidade vais? – perguntei.
–
Setenta
– disse Terrez.
–
Como
podes ter a certeza? – insisti.
–
É
o que marca o ponteiro – explicou Terrez.
–
Quem
te garante que o ponteiro funciona bem? – perguntou Arueta. – Se
a Terra está em movimento como todos os astros, onde se encontra o
ponto de referência para medir a velocidade a que nos deslocamos?
Terrez
esclareceu que a velocidade era calculada conforme o movimento da
Terra, o que levou Arueta a replicar que a Terra não andaria sempre
à mesma velocidade. Nuns dias talvez andasse mais depressa do que
noutros, conforme estivesse mais ou menos cansada, um pormenor que
ela não tinha a certeza de o conta-quilómetros ser capaz de
contabilizar.
–
Se
somarmos todos os erros já cometidos por esse conta-quilómetros –
realçou Arueta – tudo indica que estamos a andar a uma velocidade
totalmente diferente da que ele aponta. Por isso, tenho muitas
dúvidas de que cheguemos ao lugar de que falas. Há fenómenos que
se tornam incompreensíveis porque não consideramos a acumulação
de desvios a que a mecânica e os números são necessariamente
conduzidos.
A
resposta de Terrez foi o roncar do motor na estrada, as árvores a
correr para trás, as rodas a guinchar nas curvas.
–
De
quem é esta estrada? – perguntei, ao fim de alguns minutos.
–
É
minha – disse Terrez.
–
E
estes montes?
–
São
meus – repetiu ele.
–
Como
arranjaste dinheiro para comprar tudo isto? – perguntou Arueta, sem
conseguir obter qualquer resposta de Terrez.
–
De
quem são as flores que crescem na beira da estrada? – perguntei.
–
São
minhas – disse Terrez.
–
Suponhamos
que esta viagem nunca mais terminava – disse Arueta – e que
dávamos a volta ao mundo, continuando sempre a perguntar-te de quem
era isto e aquilo, responderias sempre que tudo era teu?
–
Não
me venhas com hipóteses absurdas! – disse Terrez. – Se não
acreditas no que te digo, deixa de me fazer perguntas.
–
De
quem é o Guadiana? – perguntei.
–
É
meu – disse Terrez.
–
E
o Tejo?
–
É
meu.
–
E
o mundo?
–
Também
– respondeu ele, puxando de outro cigarro.
Zava
quis saber como fora o fim da viagem. Não conseguia esconder a sua
curiosidade. Mas Artujo não sabia bem o que acontecera.
–
Andámos
até fartar – explicou. – Não sentíamos qualquer cansaço. Foi
uma situação difícil de explicar. Atrás de uns caminhos vinham
sempre outros. E Terrez foi sempre dizendo que era dono de tudo o que
víamos. O que sei é que, a dada altura, estávamos de regresso a
casa, como se realmente tivéssemos dado a volta ao planeta, ou à
cidade, e reencontrado o ponto de origem, sem nunca termos atingido o
lugar que procurávamos. Depois, Terrez estacionou o automóvel
amarelo no pátio e até hoje não voltou a meter-se nele porque, ao
entrarmos em casa, deu-se aquele grande clarão que abalou a cidade,
destruindo-a.
22
Mireu
pensava, imaginava Luana a seu lado e, no quarto despido, sobre a
cama de ferro, afagava o próprio sexo. Luana estava com um vestido
finíssimo de um pálido cor-de-rosa puxado para o pescoço, os seios
revolvendo-se, pequenos e rijos.
Mireu
trepava pelas ancas de Luana e toda ela se abria sem tirar as
calcinhas. Ele tentava abrir a braguilha, mas ela pedia que “não,
não”, e fazia uma beicinha de angústia, permitindo que ele lhe
trincasse os seios como um ratinho sequioso.
Luana
fechava os olhos por detrás do vestido feito cachecol e pedia-lhe:
–
Deixa
anoitecer primeiro, Mireu. Alguém pode ver. Ainda é cedo. Não
estou preparada.
Ele
sentia o sexo enrodilhado dentro das calças, sem encontrar forma de
se libertar, embora sobre a cama de ferro tivesse oportunidade de
acarinhar o sexo a seu belo prazer. Estava só, mas tinha Luana na
ideia. O imaginário, por si, já era palpável. Mireu ia
reconstituindo a cena, sorvendo a memória do pescoço de Luana e
retesava-se todo como se acordasse naquele momento.
“Por
onde andas agora, Luana?”, pensava ele. “Tenho-te aqui como
antes, completa e tocável. Pensas que fugiste, mas não. Tenho-te
sob as asas do meu desejo, da recordação adocicada. Estende mais as
pernas, Luana, só mais um bocadinho…” e Mireu pressentia os
pêlos em cacho sob as calças húmidas, de repente. Luana fazia
movimentos de anca como se estivesse despida, mas não estava, o que
talvez fosse melhor, afinal. Se ela deixasse fazer tudo, seria a
primeira vez para Mireu. No fundo, ele tinha medo. Como encontraria o
orifício? E se não o encontrasse? Nessa altura, ela perceberia que
ele nada entendia do assunto.
“Deixa
ficar as calcinhas”, disse Mireu. “Sentes-te bem? É quase noite.
Tens a certeza de que ninguém nos descobrirá? Sabes a que altura
do chão fica a janela deste quarto?”
Subitamente,
o cheiro a cavalos e pólvora saltou para o meio do quarto, Mireu
disse que até parecia impossível o que estava a acontecer e depois
veio o cheiro das cascas de laranja que ele tentava afastar como quem
repelia o diabo.
“Estou
quase… estou quase…”, dizia Mireu. “Onde te meteste, Luana? E
eu a pensar que estavas ao pé de mim. Andas a gozar-me, ao
abandonar-me num momento destes. Eu estava quase, Luana”.
A
porta abriu-se e Luana surgiu, antes que fosse tarde demais. “Como
conseguiste safar-te?”, pergunta Mireu. “Estavas aí e eu não te
via. Como é possível uma situação destas? Dizes que te escondeste
dentro do meu esquecimento, mas não acredito. Estás a enganar-me.
Pensas que o isolamento me tirou o juízo, por isso vais e vens como
a agonia. Fazes-me sofrer. Voltemos ao princípio, ao princípio de
tudo, vai lá, põe as pernas na posição em que as tinhas antes,
não é preciso tanto, assim está bem, ora vejamos: eu estava na
zona do umbigo, tens os mamilos murchos, Luana, não brinques, se
queres ter prazer a sério tira as calcinhas e verás como é, julgas
que sou imbecil e não entendo destas coisas ou quê? Ui… tenho
aqui uma dor na perna direita, sim, aí mesmo. É melhor pararmos por
aqui, Luana, hoje não me pareces muito bem, e eu tenho esta dor na
perna que não me larga. Estou sozinho, esquecido. Mudaste muito,
Luana. Mudaste muito desde a última vez que te vi. Apetece-me chorar
eternamente. Se eu chorasse, as minhas lágrimas haviam de ir tão
longe como as estrelas. Queria que as tuas mãos me impedissem a
visão da Terra e dos Homens. De ti, só quero isto, afinal. Ao fim e
ao cabo, sou um farrapo. Que é que os amigos vão pensar de mim?
Estou-me nas tintas para o que digam, mas a verdade é que custa, lá
isso custa. Eles aí vêm, os cavalos, os cavalos aí vêm.
Acode-me, Luana! A pólvora. Os teus beijos sabem a casca de laranja.
Pára com isso, desculpa, não dá, onde estou? Que raio de quarto é
este onde me meteste? E estas aranhas? As aranhas são traiçoeiras e
destroem o cérebro quando menos se espera. Que dia é hoje? Devo ter
enlouquecido. Loucura só pode ser isto. Fui apanhado. Pronto,
cheguei ao fim. Reduzo-me a pó sobre o corpo imaginário de Luana.
Torno-me inútil no voo dos insectos, os eternos esquecidos dos
Homens. Sou menos do que um escravo. O meu pénis encolhe, encolhe e
fica do tamanho de uma cereja. Socorro! Abram a porta. Não aguento
mais!”
23
Nos
últimos tempos, Nícora aparecera com uma
grande barriga. Artujo andava intrigado. Não parava de magicar, de
procurar hipóteses explicativas para aquela mudança no corpo de
Nícora. Perguntava-se a que poderia ser aquilo devido, mas não
encontrava resposta. Não se podia dizer que Nícora fosse uma pessoa
magra, mas a verdade é que o seu ventre estava um exagero, uma coisa
nunca vista que Artujo jamais presenciara ao longo de todos os seus
anos de vida. Já tinha alguns na pele. Os suficientes para ter
aprendido a decifrar o mistério da Santíssima Trindade, conhecer
Deus e os Homens por dentro e por fora, ter experiências com
mulheres. Quando tivesse trinta anos não havia de pensar de forma
diferente. Só uma barriga daquele tamanho era uma coisa francamente
esquisita.
Que
se teria passado com Nícora? O melhor seria perguntar-lhe
directamente, sem rodeios. Já a tinha visto nua no tanque da roupa.
Embora poucas vezes e sem grande sucesso já tinha mesmo estado com
ela na cama. O pior de tudo tinha sido a escuridão. De qualquer
modo, a barriga grande de uma mulher não era uma situação
necessariamente embaraçosa.
Artujo
foi à cozinha. Nícora lavava os pratos depois do almoço. Ele
espetou-lhe o indicador no ventre dilatado e perguntou sem mais nem
menos:
–
Por
que tens a barriga tão grande?
Ela
olhou-o, surpreendida, corou, pensando na resposta que poderia dar,
mas travou as palavras e desatou a rir nervosamente.
Artujo
achou estranha aquela reacção porque Nícora estava geralmente
triste e deprimida, soltando ais por todos os cantos da casa. Pudera,
sempre a lavar pratos e a esfregar roupa.
Com
um sorriso pouco natural, Nícora acabou
por confessar que tinha a barriga grande porque estava doente.
–
É
uma doença – sublinhou ela.
Ao
ouvir o termo “doença”, Artujo
sentiu-se tremer e abriu muito os olhos, como se lhe custasse
acreditar no que ouvia. Nícora estava doente e nada lhe dissera.
Artujo engoliu o eco das palavras que ouvira. Doente. Grande doença
devia ser a de Nícora para lhe deixar a barriga daquele tamanho.
–
Por
que não vais ao médico? – perguntou Artujo, procurando esconder a
preocupação com o estado de saúde de Nícora. – Deves tratar-te,
imediatamente. Pode ser grave.
–
Não
te preocupes – respondeu Nícora. – Isto há-de passar.
–
Mas,
Nícora, é perigoso ter a barriga assim dilatada! Toma cuidado.
–
Deixa
lá, já estou habituada.
Artujo
afastou-se, com um grande peso no coração. Matutava, matutava
naquilo. Não conseguia perceber como Nícora não denotava
preocupação pela doença que tinha. Nem entendia por que razão ela
perdera o à vontade quando lhe fizera a pergunta à queima-roupa.
Algo de estranho devia estar para acontecer. Artujo nunca mais deixou
de pensar na conversa que tivera com Nícora. À noite, acordava
sobressaltado, abria os olhos na escuridão e via gente de toda a
espécie suspensa das paredes. Punham-lhe a língua de fora sem mais
nem menos. Artujo não se mexia, petrificado de medo. Nem se escondia
debaixo dos lençóis. Não gritava. Só continuava a mirar as
figuras deformadas que iam e vinham nos lampejos azulados da
escuridão. Era incapaz de desviar os olhos dos estranhos visitantes.
O seu medo fazia que não pudesse deixar de os observar, à espera do
que pudesse acontecer. Se aquela gente ali estava, alguma razão
haveria. E muito mais àquela hora.
Artujo
não dormia até que viesse a madrugada e levasse na sua palidez as
figuras que passavam a noite dependuradas nas paredes do seu quarto,
como os macacos num jardim zoológico. Outras vezes, Artujo nem tinha
tempo de adormecer. Ouvia barulho no quarto de Nícora, gemidos e
frases entrecortadas assim: “Não… não… mais devagarinho,
estás a magoar-me”. Que seria aquilo a altas horas no quarto de
Nícora? Se ela dormia sozinha, quem poderia estar a importuná-la?
Talvez Nícora estivesse pior da tal doença da barriga e tivesse
chamado um médico de urgência. “Mete… mete… mas devagar”,
dizia Nícora. “Mete… mete…”, pensava Artujo. Que estaria o
médico a meter no corpo de Nícora? Uma injecção não podia ser
porque ao apanharem injecções as pessoas não diziam “mete…
mete…”. E então se Nícora tivesse piorado de um momento para o
outro não o teria chamado a ele?
Tudo
aquilo vinha confundir os aflitos pensamentos de Artujo. A partir de
então, passava noites inteiras em claro, à espera de ouvir Nícora
gemer. Às vezes, ela não gemia. E ele sempre à espera. Com todos
os diabos. Antes Nícora se pusesse a gemer como de costume.
O
Sol nascia e Artujo mantinha-se hirto entre os lençóis, a ver
quando o médico chegava, só para ouvir Nícora gemer e dizer “mete…
mete…”.
Por
mais que se esforçasse, Artujo não dormia. Estar acordado era uma
maneira de proteger Nícora. Nunca se sabia o que lhe podiam fazer.
Depois,
Artujo começou a temer seriamente que Nícora morresse. Quem está
doente pode morrer quando menos se espera, pensava Artujo. E nunca
mais dormiu em dias de sua vida. Nunca mais dormiu, que se lembre.
Que tivesse consciência de tal. Não só por passar as noites à
espera dos gemidos de Nícora, mas também por estar à espera do
último suspiro dela.
Quando
ouvia Nícora gemer, porém, Artujo não se
atrevia a socorrê-la. Podia ser muito pior se acaso surpreendesse o
médico a espetar-lhe uma agulha nas nádegas. A solução era
esperar. Havia que ser paciente. Esperar, sem precipitações, sob o
medo constante de, um dia, ir encontrar Nícora, gelada e pálida,
sobre a cama.
24
Arueta
vagueava pelos quartos da casa com as coxas, as pernas, rebolando-se
dentro de uma saia verde até aos pés. Passou os olhos pelo sofá de
riscas brancas e pretas, percorreu o tapete de corda em todas as
direcções, ajeitou a mesinha de cana, fixou o relógio com os
ponteiros parados e foi sentar-se ao lado de Silécio, que estava
imobilizado como uma estátua num dos cantos menos visíveis da casa.
Mireu
falava para dentro de algumas garrafas vazias de cerveja e a sua voz
ecoava de forma estranha na intimidade do vidro. Acariciava a cadeira
de vimes, como numa despedida, fazendo-a ranger sob o corpo
amolecido. Parecia estar farto de tudo: de Arueta, de Silécio, de
Terrez. Era como se antecipasse, ou desejasse, a sua agonia
derradeira.
No
rosto de Arueta, lia-se a ideia de que aquele não era o seu mundo.
Era outro o mundo das mulheres, do carinho, da ternura espontânea e
primitiva. Arueta era quase selvagem nessas alturas e aparentava uma
distância assustadora em relação a tudo, ao ponto de nem o velho
Terrez a perceber com facilidade. Havia momentos em que, para Arueta,
só fazia sentido estar sentada ao lado de Silécio.
Assim
foi: Mireu substituiu a cadeira de vimes
por uma cadeira de rodas, que encontrou não se sabe onde. Talvez
tivesse previsto tudo aquilo: a tempestade, o calor, e tenha guardado
a cadeira de rodas algures desde outros tempos. A não ser que a
tivesse descoberto entre o lixo nas ruas da cidade.
Estava
cada vez mais pálido. Os seus pés assemelhavam-se a dois melões
revestidos de pele humana. O seu passatempo favorito era estar
sentado na cadeira de rodas cujos braços metálicos despidos de
conforto afagava insistentemente.
Mireu
já não se irritava com a presença de Silécio. Dedicava-lhe uma
indiferença inesperada e natural. Mirava absorto e triste a
bicicleta velha encostada à parede branca, as duas abóboras, a
árvore que Artujo plantara e que nunca perdera o colorido, movia os
lábios na direcção do candeeiro de pinho sem que se ouvisse
qualquer som na sua boca gretada, batia com as mãos nos joelhos ao
ritmo da ausência do tempo. Mireu não voltara a falar na maré
cheia, nem sequer na cor enferrujada dos dias.
Arueta
pensava com o queixo sobre as mãos e através da janela namorava o
crepúsculo, como se este fosse um homem ou mais do que isso.
Terrez
apareceu, rasgou o mutismo geral e disse:
–
Há
certas agonias suaves como os desmaios. É preciso tomar atenção
porque Mireu pode entrar em decomposição de um momento para o
outro. Traz o candeeiro aqui para junto de Mireu, minha boa Arueta.
Nunca vi uma agonia assim. Um cristão diria que é a morte de um
santo. Mas ele não era santo nenhum. Ora reparem como um jovem
agoniza prematuramente, sem razões para isso. É verdade que ele
tinha os seus problemas, mas não era caso para morrer assim.
–
Escondia-os
todos – disse Arueta. – Era muito orgulhoso. Demasiado orgulhoso.
Nem comigo era capaz de se abrir. Eu já pressentira que ele acabaria
cedo. Quando desabafava, ou quando pretendia fazê-lo, Mireu incluía
bastante imaginação nos seus relatos. Quase posso dizer que mentia
sem que ele próprio se apercebesse disso. Nunca conseguiu organizar
os seus raciocínios. Era um insatisfeito, embora não o
reconhecesse. Quando usava a violência, Mireu fazia-o de uma forma
estranha como se essa violência lhe fosse estranha ou remontasse a
um tempo que o antecedia. Creio que Mireu deve ter sofrido muito,
bastante mais do que sabemos. Mireu não tinha capacidade de encaixe
para tanta dor. Era bom homem. Escrupulosamente generoso – dizia
Arueta, deixando correr a primeira lágrima – ainda que, por vezes,
não fosse fácil distinguir isso nele porque Mireu não gostava de
manifestar os seus sentimentos. Preferia que fossem os outros a
descobri-los. Tinha um grande prazer em desdobrar-se através de
imagens que não lhe pertenciam. No fundo, jogava consigo e com os
seus fantasmas, como faz toda a gente. Se eu lhe dizia: “Mireu, és
um traumatizado!”, ele ficava rubro de espanto e pavor. Negava-o
terminantemente. Negava-o a toda a hora. Até se esquecer da minha
afirmação.
Mireu
saiu da sonolência em que se deixara abater e voltou a palpar os
músculos das pernas, alargando as narinas como se o ar lhe faltasse.
Penteou-se demoradamente com a polpa dos dedos. Deu pequenos toques
na nuca e ouviu-se o ruído de quem bate à porta de uma casa vazia.
Terrez
fez sinal com os olhos a Arueta, mas ela já não ia a tempo de se
conter e disse:
–
É
chato que me vejas como uma mulher imatura, Mireu. Não consigo ser
de outra maneira. – Arueta estendeu as mãos para Mireu. – Mas
tudo tenho feito para te demonstrar que já não sou uma criança.
O
gato eriçado apareceu sobre o peitoril da janela. Arueta
foi lá e pôs-se a fazer sinais com as mãos para o bicho, que tinha
os pêlos erguidos e brilhantes como aquelas rendas prateadas com que
se enfeitam as árvores de Natal. Arueta encostou o dedo mindinho à
vidraça e o gato lambia-o, lambia-o do outro lado como a um
chocolate.
Com
as mãos sobre os joelhos, Mireu disse para Arueta:
–
Estás
eufórica porque me vês na cadeira de rodas. Talvez penses que vou
mesmo morrer. Julgas que estou inutilizado, paralítico. Acreditas no
que disse Terrez quanto à possibilidade de esta ser a minha
derradeira agonia. Não entres na jogada do velho.
E
para Terrez:
–
Já
era tempo de teres juízo, meu animalzinho de corda. Estás mais
frustrado do que nunca. O que tu queres é ir para a cama com Arueta.
Mas não o farás enquanto eu for vivo.
–
Quem
te pôs essas ideias na cabeça? – perguntou Arueta. – Tenho a
certeza de que foi Artujo. Não podia ser outro. Estás completamente
fora de ti. Qualquer dia, faço amor com Silécio e aí, sim, verás
como é. Prefiro o corpo suave de Silécio aos vossos sexos enormes e
deformados. Silécio tem mais sensibilidade do que vocês dois
juntos. Gosto de Terrez, mas por nada deste mundo ligaria o seu corpo
ao meu.
–
Precisas
de fazer a barba, Mireu – disse Terrez, indo arrancar Arueta ao
canto de Silécio, para a sentar no regaço, delicadamente.
Arueta
fixou-o nos olhos e perguntou:
–
Que
fazes, Terrez? Não vês que Mireu nos está a olhar? Ao menos
respeita os seus últimos momentos. Pára, pára, Terrez! – pedia
ela com pouca firmeza.
–
Não
se nota nada porque estás de saia – replicou Terrez. – Vamos
para outro quarto, se preferires. Terás oportunidade de ver que
ainda sou um jovem. Mireu está nas últimas e talvez até goste das
coisas assim, embora não o diga abertamente. É uma cena bonita no
fim da vida dele. Esta visão vai subir-lhe a temperatura. Mireu
dificilmente acreditará no que os seus olhos vêem. Pensará que não
tenho descaramento para tanto. Mireu vai ficar todo quentinho como se
estivesse a assar num forno. Há que experimentar tudo, minha Arueta,
ou nunca seremos gente a valer. Já te disse que a moral é uma perda
de tempo. Por que estás assustada? Como vês, estamos agora todos
quentinhos nesta casa. Estou admirado com a quietude de Silécio. É
muito mais equilibrado do que Mireu. Eu próprio não me importaria
de o conhecer melhor. Sinto uma grande atracção pelas suas pernas
macias. Tem umas pernas mais sedutoras do que muitas mulheres.
Sem
dizer nada, Mireu levantou-se a custo com os olhos cravados no
candeeiro de pinho. Desenroscou-lhe a lâmpada e atirou-a bruscamente
contra a vidraça, onde se via o gato eriçado. A lâmpada desfez-se
em mil pedaços e pareceu que os grãos de vidro se misturavam
lentamente ao pêlo do gato no lado de fora, atravessando a vidraça,
como se lá só houvesse poeira e a vida ganhasse luz nos olhos do
bicho.
25
O
calor zaragateava com as folhas murchas no pátio exterior da casa.
Houve a chuva e o vento. O frio. Depois, veio a tempestade apaziguar
tudo e todos. No mundo, rebolavam caules secos, cascas de árvores,
penas de pássaros caídos mortos nas esquinas e nos beirais. Os
troncos das árvores não resistiram ao calor, que abriu cavidades
nas suas peles encarquilhadas. Era intenso o desejo de ar fresco, da
ventania que o tempo sumira, da chuva que desabava alegre nos dias em
que a avó nos visitava trazendo rebuçados de surpresa. Com a
poeira, os nós dos troncos pareciam coalhos de riso e nostalgia. As
nódoas alastravam nas paredes das casas em toda a cidade. No pátio,
o alcatrão fervilhava junto às últimas ervas arroxeadas como quem
testemunha o instante em que lhe levam definitivamente a própria
alma. O calor era cruel como as polícias secretas e atiçava o óleo
nos pequenos charcos onde as rãs pasmavam. Libélulas feridas vinham
espantadas bater com as cabeças frágeis no metal do automóvel
alaranjado de velhice. As moscas cirandavam à volta dos pneus
enrugados e fedorentos como se a borracha expelisse perfumes de
mulher. A poeira desbotava as coisas e deixava-as com a cor do
crepúsculo, atirava o calor contra as janelas e ceifava as sombras
que o fim de tarde semeava dentro da casa. A cerca de arame que
protegia o pátio estalava sob as asas dilatadas do dia e Mireu
pensou que assim tudo começara. A primeira explosão do cosmos
acontecera à exacta temperatura do arame que circundava o pátio da
casa.
“As
varizes de Nícora…”, balbuciava Mireu sem que o ouvissem. “As
varizes…”. As galinhas que no meio do desespero se meteram pelos
esgotos e agora aquele cheiro atroz a que ninguém resistia. O fim
das coisas era aterrador. Até quando tudo aquilo se prolongaria? E a
partir daí seria a vida sempre empoeirada e calorenta?
Mireu
foi buscar papel e lápis. Voltou a sentar-se na cadeira de rodas
junto à janela e escreveu qualquer coisa sobre o joelho. Dobrou o
papel. Depois, abriu cuidadosamente a janela e fez um sinal a
Silécio, que apareceu sem demora, como se esperasse aquele gesto a
qualquer momento.
–
É
para Luana – disse Mireu, entregando-lhe o bilhete. – É urgente.
Não o percas. Fico à espera da resposta. Não voltes com as mãos a
abanar. Vê se não te perdes no caminho. Se ela não estiver, espera
que chegue. Não deve demorar. Desculpa pedir-te isto sem mais nem
menos, mas só tu me podes ajudar neste momento. Quando voltares com
a resposta, entrega-ma sem que Arueta a veja. Espero que faças tudo
como estou a dizer-te. Se te esqueceres de alguma coisa, não teremos
salvação. Estamos nas tuas mãos e nas mãos de Luana. Ai de ti se
me trais. Tens agora a oportunidade de demonstrar a espécie de gente
que és.
Mireu
ficou na janela, por detrás dos vidros, vendo Silécio afastar-se
lentamente, como se não compreendesse o significado do bilhete que
lhe tinha sido entregue. Silécio andava tão lentamente que até
parecia hesitar, até parecia preferir que tudo acabasse ali. Que
diferença faria? Mas não demorou muito para que Silécio decidisse
partir. E partiu, deixando Mireu colado ao vidro da sua âncora.
26
–
Se
quando deixamos de respirar (e só aí) passamos a não existir –
disse Terrez – então é porque nunca existimos realmente. A
palavra “existir” pouco ou nada diz do que acontece nas nossas
vidas. Nota bem: respiramos e mais nada. E é a partir do momento em
que deixamos de respirar que tudo termina. Que valor tem a existência
se o que fazemos neste mundo é só respirar? Preocupamo-nos com
tanta coisa, mas isso não tem interesse ou importância de maior. O
que conta é o que somos, na verdade, O nosso ser resume-se a um
grande pulmão que respira sem parar pelos dias fora. Não estou a
reduzir as coisas, não se trata de menosprezar o que quer que seja.
O que penso é que não nos devemos agarrar ao que não existe, como
é o caso da morte. Sei que as minhas palavras parecem não fazer
sentido, mas acabarás por entender onde quero chegar. Quando afirmo
que não existimos quero apenas dizer que a existência não é o que
se pensa que é. Existir é respirar, como já te disse. Não há
mais nada a discutir. Quando deixo de respirar, já não sou eu. Daí
a minha indiferença por tudo. Às vezes, rio-me das preocupações
deste e daquele, da tensão inútil em que vivem. Fazem problemas de
coisas tão simples. Há quem tenha a mania de complicar tudo.
Depois, põem as mãos à cabeça e gritam por socorro, dizendo-se
desgraçados e coitadinhos. Mas não tenho pena deles. Ora vê o que
nos aconteceu com esta tempestade. Se todos se tivessem deixado estar
nos seus lugares, sossegadinhos, respirando saudavelmente, nada disto
teria acontecido. A raça humana não se distingue das outras. Antes
pelo contrário. Só temos feito miséria neste mundo. Uma roda-viva
que vai dar a parte nenhuma. De que nos tem servido isso? Que me
interessa visitar a Jamaica? Se não existissem aviões, eu não
sentiria necessidade de lá ir e teria menos uma preocupação na
vida. Mas acabei por ceder à tentação. Corri o mundo quase todo e
fiquei muito pior do que estava antes ao ver que a vida é a mesma
coisa em toda a parte. As pessoas são todas parecidas e ocupam-se
quase só dos mesmos assuntos. Fiquei farto do mundo, depois de o ter
conhecido. O que pode valer alguma coisa é deixarmo-nos estar nos
nossos lugares, para reagirmos quando nos atacarem, tal como fazem os
animais. Não concordo que nos ponham a pata em cima, mas por que
hei-de viver angustiado se não tenho razões para isso? Nada pode
aborrecer uma pessoa se ela se capacitar de que viver é apenas
respirar. Talvez eu tenha deixado de ver com lucidez devido à idade,
mas o certo é que vivo sem qualquer espécie de problemas. Nada me
aborrece. Prefiro continuar assim em vez de ser complicado e deixar
criar bolor na inteligência. Respirar com alegria e saúde é o que
importa. Já reparaste que logo a seguir ao orgasmo o mundo inteiro
se transforma dentro de nós? Desaparecem as preocupações, as
ninharias que momentos antes nos angustiavam, as dúvidas, os
dilemas, as contradições. A maneira que encontrei de ser feliz foi
dar cabo de todos os tabus que me constrangiam e que me haviam
inculcado na alma desde a infância. Mas só o consegui depois de
conhecer razoavelmente a espécie a que pertenço. Cheguei a sentir
vergonha de ser quem sou. Que diferença haverá entre construir um
arranha-céus, uma teia de aranha ou um ninho de pássaro? Eu cá
prefiro a teia ou o ninho, a estabilidade psíquica através da
História. Se ao longo dos anos tivemos necessidade de nos adaptar e
mudar coisas isso só vem demonstrar que fomos incapazes de nos
organizar para dar resposta às situações ou que nos desenvolvemos
a ritmos para os quais nunca estivemos preparados. Assim fomos
cometendo erros atrás de erros até chegarmos ao deplorável mundo
actual. Durante muito tempo nos preocupámos em saber se era o Sol
que andava à volta da Terra ou se era a Terra que andava à volta do
Sol. Mas que interesse tem isso? Não vivo melhor ou pior por saber
menos ou mais de astronomia e geografia. Mas para não perder o fio à
conversa, deixa-me voltar ao assunto da respiração. Num certo
sentido, nunca se pára de respirar, mesmo depois de se entrar em
estado de decomposição. Depois da agonia, o nosso corpo
distribui-se em partículas pela natureza. Imagino que não estejas a
gostar da conversa, mas desentope, ao menos. Essa tua mudez pode ser
um sinal de agonia permanente. Não penses que o nosso acto de
respiração solitária no Universo é uma deficiência natural. Por
que razão tivemos de nascer se hoje continuamos tão ignorantes como
quando nos encontrávamos nos ventres das nossas mães? Afinal pouco
ou nada conseguimos. E por mais progressos que façamos estaremos
sempre longe de alcançar o que interessa. É um desperdício. A
natureza é um antro de horror. Os seres só sobrevivem à custa uns
dos outros. Matam-se alfaces, feijões, peixes, galinhas. Melhor
seria se ninguém precisasse de se alimentar. O ar devia bastar-nos.
E para evitar o superpovoamento do planeta cada ser vivo teria uma
vida mais curta. Não haveria dor física provocada pela destruição,
nem guerras, ambições e lutas. No fundo, os Homens só se guerreiam
porque uns querem sempre comer mais do que os outros. É uma questão
de fome, podes crer. Desinteressei-me da vida quando fui percebendo
que o criador do universo podia muito bem ter sido mais feliz na sua
realização. Só não me suicido porque julgo que o sacrifício não
vale a pena. Ao menos, ando por aqui a respirar.
27
–
Uma
das mais antigas recordações que tenho de minha mãe – disse
Artujo – foi num dia em que ela me tentava dar uma sopa que eu
detestava. Ela debruçava-se sobre mim com a colher na mão, mas o
que eu via, e sentia, era os seus seios enormes chocando contra a
minha face. A certa altura, engasguei-me com a sopa que ela me
despejava pela garganta e empurrei-a com tanta força que ela foi
bater com a nuca na mesa-de-cabeceira e desmaiou. Já nesse tempo eu
pensava que era preferível estar no ventre da mãe, não chegar a
nascer, em vez de ser atirado para o mundo, esta cova de tigres
esfaimados. O empurrão que dei em minha mãe foi uma vingança.
Apesar da minha tenra idade, eu já sabia o que fazia. No mínimo, se
eu não tivesse nascido, tinha-se evitado a visão monstruosa dos
seios de minha mãe batendo-me na cara. Mas o mais engraçado de tudo
é que meu pai entrou no quarto pouco depois de a minha mãe ter
desmaiado e não queria acreditar no que os seus olhos viam: a mulher
com quem casara estava inconsciente, estendida no chão, junto à
mesa-de-cabeceira. Disse-te que isto era engraçado, mas a verdade é
que se tornou a cena mais triste de toda a minha vida. Corri para o
meu pai e disse-lhe: “Fui eu, fui eu, pai. Magoei a mãezinha”.
Ele estava boquiaberto porque era a primeira vez que me ouvia falar
com tanta fluência e convicção. Procurou recompor-se do susto e
disse-me: “Cala-te tolo!” Foi este o primeiro vexame da minha
vida, querida Zava. Mas o meu pai acabou por pagá-lo caro, como
verás. O meu pai tomou nos braços a minha mãe e foi para a janela
gritar, pedindo ajuda à vizinhança. Lembro-me perfeitamente como se
fosse hoje de ver os cabelos alourados de minha mãe esvoaçando na
ventania do Outono. Pareceu-me que amanhecia só pela visão que me
ficou do rosto pálido de minha mãe assomando à janela ventosa nos
braços do marido. Eu estava triste, muito triste, mas não deixava
de sentir um certo regozijo pela proeza que acabara de cometer. Meu
pai gritava de tal forma na janela que por pouco não deixou cair o
corpo inerte de minha mãe. Agarrou-a com mais força, deixando que
as formas do corpo dela se destacassem aos olhos surpreendidos da
vizinhança. Quem passava na rua nada fez. Ninguém reagiu com a
ponta de um dedo. Devem ter pensado que o meu pai enlouquecera ou que
tentava matar a minha mãe. Mas tinha sido eu o responsável por tudo
aquilo. Não sei porquê, e como já te disse, a imagem que guardo do
acontecimento não é só uma imagem de terror. O que sinto é como
se naquele momento o meu acto tivesse sido banal, impensado, sem
consequências. Algo que se faz sem medir os efeitos. Talvez possa
mesmo dizer que aquele primeiro e último empurrão que dei a minha
mãe me deixou um certo sabor de justiça, uma espécie de dever
cumprido, uma maneira de nivelar os dois pratos da balança, porque
isto de pôr uma criança no mundo não deve depender exclusivamente
da vontade arbitrária dos pais. Quem nasce deve ter uma palavra a
dizer. Custou-me aceitar que a minha mãe me tivesse posto no mundo
sem querer saber a minha opinião sobre o assunto. Creio que ela não
mediu bem a dimensão do seu acto. O mais aborrecido de tudo foi a
sopa e os seios que por pouco não me asfixiavam. Detesto coisas
moles, Zava. Embora por vezes pareça o contrário, a verdade é que
fui sempre um duro desde os meus primeiros anos de vida. E gosto de
gente dura, de carne aproveitada a rigor sobre as ossadas. Queres
saber o fim da história de minha mãe? Apesar de todos os esforços
de meu pai, ela nunca mais deu acordo de si. O que se julgava ser um
desmaio, era a morte. Uma morte feia e repentina no coração do
Outono. Meu pai não resistiu ao choque e alguns dias depois do
funeral de minha mãe viu-se que tinha enlouquecido. Quanto a mim,
passei dois anos numa casa de correcção, onde tudo fizeram para me
moderar os impulsos. Mas não faltou quem considerasse que o empurrão
que dei a minha mãe só pretendera pôr as coisas no seu devido
lugar. Neste caso, o seio de uma mulher. Depois de ter saído da casa
de correcção, Nícora, que era a nossa empregada de limpeza,
levou-me para sua casa, onde fiquei a viver com ela, apesar das
poucas posses que lhe eram reconhecidas.
28
Silécio
nunca falava. Aparecia e desaparecia dentro de casa como uma nuvem de
fumo que não se sabe de onde veio nem para onde vai. Mas quando
estava presente, chamava mais a atenção do que todos os que tinham
sobrevivido ao calor. Silécio tinha o abdómen dilatado pela
cerveja. Usava muito pouco vestuário e, ao andar, quase não se
distinguia o ruído dos seus passos. Além dos olhos em permanente
observação, costumava despejar garrafas inteiras de cerveja pelas
goelas abaixo. Pegava no corpo de vidro, firmemente, com as duas
mãos, enfiava na boca o gargalo da garrafa e de um fôlego fazia
desaparecer o líquido espumante.
“As
pessoas perdem quase todo o seu tempo em conversas inúteis”,
pensava Silécio. “Arrastam-se nos dias sem sentido como latas
presas por um fio à cauda de um cão. O segredo da vida está no
silêncio, que me leva a entender tudo sem reserva. Falo sozinho. Não
tenho interlocutores. Recuso-os. Nem imagino um ouvinte. As palavras
são animais que as pessoas mastigam quase permanentemente como se
receassem ser devoradas pelo seu veneno. Em vez disso, deviam passar
os dias a dormir. As palavras vêm carregadas de vício. São uma
mistura de saliva e mau hálito com dentes podres e esburacados. São
monótonas e repetitivas. Não têm música nem graça. Só escapam
as que têm humor. Estou convencid de que os dentes apodrecem quando
se fala muito à toa. Faria mais sentido que, em vez de falarem, as
pessoas gesticulassem, olhassem em silêncio umas para as outras,
dançassem. Haviam de ser mais independentes e livres. A linguagem
falada condena as gentes ao desentendimento. Os homens não passam de
uns depravados. Em cada coisa que fazem ou deixam por fazer
afastam-se da realidade. Procurar o método? Mas qual método? Uma
simples desculpa para confundir as pessoas. Uma maneira de manter a
produção a um nível eficaz. Vivo num mundo cego e gago. Deixar de
falar foi a melhor decisão que tomei na vida. Deste modo, evito os
jogos absurdos. Embora fale e tente comunicar, cada humano continua a
ser um solitário, um objecto inacessível como qualquer outro, um
marginal. A vida não passa da peregrinação do sangue para as
células e de uma dobadoura de ar para os pulmões. Por outras
palavras, é o que diz Terrez. Entendo-me na perfeição com as
coisas que me rodeiam. A nossa linguagem consta de sinais, mover de
olhos, enrugar de testa, jogos de dedos, vibrações de músculos e
pele, ombros, posições de braços e pernas. Tudo tem um especial
significado para quem vive no silêncio. Falamos uma linguagem sem
códigos. Compete a cada um descobrir o sentido de um novo movimento,
dar-lhe uma interpretação própria. Assim, não há limites para a
comunicação. Exprime-se tudo o que se sente, transportando os
pensamentos, as sensações, as ideias, para a flor da pele. Expomos
a intimidade, sem riscos de a vermos violada. Um gesto não magoa
como a palavra. No mundo do progresso, cada homem é uma pedra
mergulhada na fundura do mar, com limos, desgostos, areia, solidão,
musgo, sonhos, peixes, estrelas e loucura. Só o silêncio permite
descortinar com clareza os engenhos do dia a dia. Os Homens herdaram
a doença do carvão em contraste com o líquido açucarado que corre
dos meus ombros para o peito. O que importa é entrar nas coisas.
29
–
Vou
deixar de ser madrasta – disse Arueta. – Não voltarei a ser o
alguidar onde se amassam os problemas nesta casa diabólica. Já não
posso com Mireu. Não sou mito. Nem imagem intocável e sacra. Não
sou indiferente às situações. A minha paciência é limitada como
a de toda a gente. Esgoto, sim, esgoto. Vacilo e hesito. Terrez
comporta-se comigo como se eu não tivesse sensibilidade. Detesto
Terrez. Assusta-me a recordação de Luana. E a recordação da
outra. Sim, refiro-me a Zava, uma frustrada com todas as letras.
Artujo é um homem misterioso. Ingénuo e sabedor, ao mesmo tempo.
Nícora é a responsável pelo desgaste de Mireu. Sim, eu disse
desgaste. Nícora é a verdadeira causadora da agonia de Mireu. Estou
farta de tudo. Não encontro amigos leais e firmes, que não hesitem
no amor a dar. Costumava pensar nisto quando ia ao supermercado e via
o sol esconder-se por detrás dos prédios, via os carros amarelados
de adormecimento e ouvia música rebentando de silêncio pelas
paredes. Sentia o coração aos pulos no meio de tudo aquilo e
desejava mais do que nunca que os povos se entendessem. Santa
ingenuidade a minha. Embora seja mulher, também atinjo o ponto de
saturação. Rebento pelas costuras. Sei que não me cabe substituir
Deus. Não existem deuses de espécie alguma e só por isso os deuses
não morrem. Mas há sempre esta indecorosa mania de O procurar em
toda a parte e dos modos mais diversos. Se Deus tivesse existido,
acabaria provavelmente com a própria vida num qualquer sótão sem
nome. Na História, a mulher tem sido mais importante do que Deus.
Porque tem suportado injustiças, guerras, discriminações. Até se
pode dizer que as mulheres criaram o mundo, só que depois se
recusaram a exercer o poder. Preferiram o amor à política. A vida
nasce entre as pernas das mulheres como acontecia ao sol antes da
tempestade. Penso que vou chorar. Não suporto mais este anoitecer
infindável. Nada tenho feito a não ser recolher das portas bilhetes
com os últimos desejos dos mortos. Não me atrevo a lê-los. São
demasiado puros. Sinto-me dentro dos bilhetes que colecciono.
Transformo-me neles. Preencho o vazio deixado pelas almas dos que
partiram. Dou corpo à sua solidão. Mas isto não pode continuar por
muito mais tempo. Quero ser eu e só eu. Uma mulher não pode ser um
remendo, um pedaço de fita-cola, um lenço de assoar. O que mais
desejo – disse Arueta – é colar todas as pessoas com
goma-arábica, com saliva, com esperma, com espuma de sabão, sei lá,
o que resulte melhor. Quem me dera que tal fosse possível. Deixar
ficar toda a gente juntinha, aos beijos, beliscões, lambedelas.
Gostava que todos os que vejo passar na rua ocupassem o seu tempo a
tocar-se e lamber-se. Às vezes, sinto como se estivesse a
desfazer-me em tiras de fiambre. É isso o que até hoje tenho feito.
Sem resultados palpáveis, acrescente-se. Chegou a altura de eu
começar a viver dentro do meu sangue e dos meus músculos. Embora
este crepúsculo muitas vezes me cegue. Neste preciso momento, tenho
a perfeita sensação de ser um daqueles automóveis ali parados.
Penso que os automóveis têm alma, têm coração. De contrário,
por que andariam eles nas estradas? O metal é tão misterioso como
Artujo ou Silécio. Por falar neste último, já percebi que só anda
a querer aproveitar-se de mim para outros fins. Muito se inventa
neste mundo. O único problema que se pode ter na verdade é ser-se
obrigado a trabalhar oito horas por dia. Mas nem isto é impossível
de resolver. Nesta casa, por exemplo, jamais alguém trabalhou desde
que rebentou a tempestade. Foi preciso que acontecesse uma tragédia
destas para que as pessoas aprendessem a sobreviver sem trabalhar. E
ninguém acha estranho que assim seja porque estamos dependentes de
forças maiores: vulcões, inundações, abalos de terra. Só quando
se atinge uma situação extrema é que as pessoas entendem. Então,
ninguém se admira da inactividade geral e da violência, quando a
há. O mundo nutre simpatia pela violência. No meio de uma
tempestade, ninguém chama ao outro preguiçoso ou assassino. Aí, a
lei é não trabalhar e então é-se capaz de tudo para sobreviver.
Comemo-nos vivos uns aos outros, se necessário for, embora esta
postura não seja exclusiva das épocas de tempestade. Uma vez, em
Nova Iorque, houve uma interrupção do fornecimento de energia
eléctrica por toda uma noite. Quando amanheceu, os pobres
continuavam a assaltar lojas e armazéns, carregando roupas e
alimentos para as suas casas. Depois, surgiu a polícia, que
testemunhou as cenas. Não houve um agente que tivesse levantado um
dedo ou premido um gatilho. Não houve uma única ordem de prisão.
Foi um dia de festa na cidade para os pobretanas que dormiam aos
milhares nos corredores do metropolitano. Volto a sentir vontade de
chorar. Esta noz que tenho na garganta é uma reprodução fiel do
meu coração. Lembro-me das uvas. Pois lembro-me. E por que não?
Lembro-me das laranjas agarradas aos galhos como raparigas
assustadas. Contaram-me os meus avós quando a memória lhes trazia
Espanha de volta, a sua querida Espanha de sonhos e melodias
desfeitas. Lembro-me que falavam de folhas de inhame, de girassóis,
de incenso nas paredes musgosas do tempo. A chuva aquecia os
telhados, garantiam. As gotas de água eram agulhas de fogo
confortando tudo em redor. Mireu há-de morrer em breve. E, se não
morrer, enlouquecerá com certeza. Tenho que deixar de gostar de
Mireu. Que raio de amor é este que me atravessa o corpo como uma
lâmina de barbear gigantesca? Já sabia que estes meus pensamentos
iam dar em choro. Estou a chorar como uma viúva desconsolada. Estou
sozinha no mundo. É a pior sensação de toda a minha vida. Ainda
que seja impossível alguém estar completamente só, a consciência
dessa situação aumenta a solidão que se sente. A tristeza das
tempestades dói. Onde vou eu buscar forças se, para mim, nunca
guardei esperança alguma? Tristes lágrimas estas que me destroçam
e consolam. Só tenho lágrimas, estas minhas estrelas de água
povoadas de dor.
30
Terrez
tanto falou e pensou na agonia, que acabou por agonizar ele mesmo.
Ficou quentinho como um dia de Verão. Muito pálido, como era de
esperar, que a agonia é mesmo assim. Estiraram-no sobre acama em
lençóis lavados e brancos. Terrez estava muito fraco. Mal se
percebia o que dizia por entre a espuma da boca. Arueta não saía da
sua beira, passando-lhe as mãos pela fronte uma vez por outra.
Terrez tinha a barba acabada de fazer e um grande sorriso na sua boca
encovada sob os olhos pequenos e negros como o fundo de um poço.
Arueta beijava Terrez como se o visse aparecer de repente após uma
longa ausência.
Mireu
não quis sair do seu canto, teimoso na cadeira de rodas. Artujo
estava junto à cama de Terrez, esguedelhado, visivelmente comovido
com a agonia do velho. Jamais havia presenciado a morte de alguém.
Silécio desapareceu como quem se esgueira por uma frincha de janela
logo que percebeu que Terrez estava perto do fim.
A
árvore mexeu-se por detrás da cabeça do moribundo e as suas cores
avivaram-se como se despertas por uma luz invisível. Os ramos da
árvore raspavam na parede e o ruído que faziam tinha a música de
um anoitecer banal. Terrez balbuciou com dificuldade:
–
Isto
é… a agoniiia. Vejam a agoniiia…
O
seu corpo tornava-se rígido quando falava e amolecia depois. Terrez
sempre pálido. Pálido como o cansaço e a lucidez dos loucos
saudáveis. Arueta chorava mansamente e enxugava as lágrimas nas
barbas negras de Artujo.
–
Ele
não resiste – disse Arueta soluçando, enquanto Terrez ia dizendo
adeus com a mão descarnada, esquelética. O adeus de Terrez.
Terrez
dizia adeus e sorria. Acenava depois com as duas mãos. O fim de
Terrez. A agonia. Era a poeira e os dias da cor de chocolate, de
cobre, de lama. A tempestade infindável, pesadona, terrível sobre a
casa e o mundo, sobre as cabeças dos mortos prolongados nas suas
agonias, que era uma forma de dizer que estavam vivos, sem que sobre
isso houvesse qualquer certeza.
Bateram
à porta. Artujo foi abrir. Entrou padre
Bubu, que foi direito ao quarto de Terrez. Olhou o velho sem mais
nada e disse:
–
Agora,
vai confessar-se dos seus pecados, que foram muitos, Terrez. A sua
hora sempre chegou, como vê.
O
velho estava lívido. Padre Bubu bochechudo, rosado, parecendo que
rebentava dentro da batina desbotada.
Indo
buscar forças não se sabe onde, Terrez
ergueu-se na cama e falou como se tivesse de novo vinte anos:
–
Põe-te
na rua, ó vendilhão do templo! Quem te mandou cá vir? Queres é
dinheiro, sei-o muito bem. Desanda daqui. Oportunista! Pecados tens
tu que não te cabem no corpo. Sai já daqui, patife. Quero morrer em
paz. Não me venhas estragar o sabor desta agonia. Desaparece Bubu de
um raio, que ainda tenho forças para te desancar.
O
padre Bubu desprendeu uma enorme gargalhada
nervosa dos dentes amarelecidos e disse:
–
Acalme-se,
Terrez. O demónio está a tentá-lo. Resta-lhe pouco tempo para se
reconciliar com Deus. Ou agora ou nunca. Não abuse da minha
paciência.
E
o padre Bubu ria, ria como um elefante o
padre Bubu, lendo-se no seu rosto, por detrás do nervosismo, uma
secreta alegria por ver Terrez agonizar enfim.
–
Mas
a tempestade deu cabo de tanta gente e de ti não? – perguntou
Terrez, alterado. – Olhem-me o sacana do padre. Era o que me
faltava. Desaparece, ó imundo! – gritou Terrez para o sacerdote,
que rebuscava nos bolsos a serenidade que evidentemente não tinha ao
ver-se agredido daquele modo.
O
padre Bubu disse então para Arueta:
–
Está
a delirar. É o delírio, percebe? Não se encontra outra explicação.
Mas perdoo-lhe. Perdoo-lhe tudo. Ai deixem-me rir – exclamava o
padre Bubu, tentando disfarçar o embaraço. – Nunca vi alguém
resistir assim à morte, resistir assim à conversão, ao amor e à
paciência do Altíssimo.
–
Estás
a dar-me cabo do juízo – vociferou Terrez. – É melhor saíres
por onde entraste, senão ainda te ponho a ferver agoniadíssimo
dentro de um caixão.
–
Vamos
lá, Terrez – cortou o padre. – Vou confessá-lo. Deus é pai de
misericórdia. Todos os ateus da paróquia se converteram no último
momento. Você não é diferente. Vai converter-se, com certeza,
porque destas coisas entendo eu. Acalme-se, Terrez, que tudo se há-de
resolver a bem. Você está perturbado, meu velho.
–
Este
burro ainda me faz perder a paciência – replicou Terrez. – Já
tenho a agonia toda estragadinha. Que fazes aí Arueta? Não me faças
essa cara de atoleimada. Já viste como este chato se veio meter onde
não é chamado? Some-te lesma, parasita, aldrabão! Vai roubar para
outro lado. Vou dar-te o dinheiro que queres. E vou dar-to já.
Quanto cobras pela vinda cá a casa, ó vigarista? Desembucha lá,
sagrado cemitério de galinhas! – e enquanto o dizia levantou-se da
cama.
O
padre Bubu suava por todos os poros,
gaguejando:
–
Pois…
pois… este é o nosso dever. Só estou a cumprir as ordens de Deus,
a vontade soberana do Senhor. Não se irrite, Terrez. Deus
perdoar-lhe-á tudo.
–
Artujo,
traz-me daí a bicicleta, que este piolho vai mesmo à minha frente
fazer companhia às almas do outro mundo – implorou Terrez.
Artujo
trouxe a bicicleta e o padre Bubu correu para a porta de saída. O
susto levava-o a não acertar com o trinco.
–
Já
saio – disse o padre, vermelho como um tomate.
Mireu
saiu da mornaça em que há tempos caíra e disse:
–
Agora
é tarde. Tranquei a porta.
Terrez
veio todo sorridente e cheio de força com a bicicleta erguida ao
alto.
–
Muito
bem, Mireu. Gostei desta – exclamou, vibrando uma forte pancada no
toutiço do padre, que se agachou e disse:
–
É
desta que me vou.
Terrez
riu e ripostou furioso:
–
Já
estás a perceber as coisas. Nunca viste um camelo à frente do
nariz. Vou acabar contigo. Ainda te somes primeiro que eu.
–
Por
favor, Terrez, não faça isso – suplicou Bubu. – Não me mate.
Há muitas almas à espera de que eu as converta. Não cometa tal
crime. Peço-lhe por tudo, Terrez, tenha piedade. Deus perdoar-lhe-á.
Já está todo perdoado. Vê? Nem precisou de se confessar. Deus já
lhe perdoou tudo.
Terrez
ficou roxo de cólera e disse:
–
Não
quero que me perdoes! Dá-me os meus pecados de volta. São meus e só
meus. Passa para cá os meus pecados. Quero levá-los inteirinhos
para a cova. Quero levar pecados para a cova em vez de flores. Não
acredito em nenhuma das tuas palavras. Devolve-me já os meus pecados
ou mato-te!
O
padre Bubu estendeu as mãos que tremiam como agulhas e fez o gesto
de devolução dos pecados que havia tirado a Terrez.
–
Assim,
sim – disse Terrez. – Gosto de ver esse procedimento ajuizado.
Querias então os meus pecados para que fosses tu a salvar-te, não
era? Sabes muito bem que só quem tem pecados é que se salva. Por
isso, querias os meus. Não és tão estúpido como eu pensava.
Põe-te a andar, a ver se volto à minha agonia. Some-te pulha! –
Terrez abriu a porta de entrada, deu um vigoroso pontapé no traseiro
do padre Bubu, que ia dizendo:
–
Obrigadinho
por tudo. Está perdoado. Vê como Deus é bom e misericordioso?
Mas
Terrez já não o ouvia e voltou assobiando para a cama. Estendeu-se
sobre os lençóis brancos, fechou os olhos, fez adeus, adeus com as
mãos, na direcção de Arueta, Artujo e Mireu, e disse:
–
Aqui
volto para a minha agonia. Digam a Nícora que plante cenouras no
jardim.
31
No
lado de fora da parede do quarto das sombras havia um retrato da
cidade antes da tempestade: casas baixas
com flores nos jardins, o pavimento das ruas de um cinzento quase
azulado, árvores frondosas róseas e violetas vergadas à claridade
estonteante, os telhados quadriculados olhando para o céu no tempo
em que era azul azul. Ao fundo de uma das ruas principais, o areal e
as ondas apanhadas em flagrante no momento em que saltavam alegres e
jovens. O mar empurrava para longe os barcos brancos de velas
transparentes e resmungonas. O céu mantinha pelo dia fora a luz dos
desejos. O sol era como uma laranja descascada e mesmo quando se
punha no retrato fazia lembrar um anel metido num dedo decepado visto
de frente. As nuvens pareciam pássaros enormes observados à lupa e
Artujo pensou que aquela lupa era o seu coração, ou uma parte dele.
Artujo desviou os olhos do retrato para a bicicleta enferrujada que
voltara a ser posta no lugar, as duas abóboras, depois o lençol com
as marcas de esperma ressequido nas fibras do tecido e a talha de
barro tão quieta que parecia estar viva – e estava, Logo a seguir,
Artujo meteu a cabeça pela abertura da talha e viu-se a abrir
cuidadosamente a porta de um galinheiro que lhe chegava de um outro
tempo e de um outro país. Procurava não fazer ruído, para evitar
que alguém aparecesse e deitasse tudo a perder. Entrou no
galinheiro: os seus pés enterravam-se na lama, que era uma mistura
de fezes e água das chuvas, olhou para a porta traseira da casa a
certificar-se de que ninguém o observava, enquanto ao mesmo tempo ia
abrindo os braços na preparação do ataque.
Artujo
tremia, tinha as botas enlameadas, os seus braços continuavam em
posição de abraçar alguém que contudo não se divisava no
momento. Avançou um passo, as galinhas recuaram com os olhos abertos
de medo, cacarejando com a aparição de Artujo. Deu mais um passo e
cresceu para os bichos de dentes cerrados. Artujo coçou a face e as
galinhas espantaram-se só com esse gesto, ensaiando pequenos voos e
saltos para trás. Estavam já todas amontoadas contra a rede do
galinheiro, conforme Artujo pretendia. De novo um passo, estava
quase, e uma galinha cantou toda nervosa, encorajando as outras a
defenderem-se, enquanto Artujo procurava desencorajá-las, dizendo em
pensamento: “Calem-se putas! Não vos faço nada. Estejam quietas”.
Mas
as galinhas não iam em cantigas e eriçavam-se todas aconchegando-se
umas às outras e esticando os pescoços aflitos como se pedindo
auxílio.
Artujo
começou a fechar os braços lentamente, cuidadoso como se estivesse
a apertar um corpo de vidro, curvou-se de olhos fixos nos olhares em
pânico das galinhas, flectiu o corpo, enquanto as aves saltavam à
uma batendo com as asas na rede. “Que pena não ser capaz de as
hipnotizar!”, pensou Artujo. E sem meias medidas atirou-se
pesadamente sobre as aves amontoadas no canto do galinheiro.
As
galinhas soltaram pios desconcertados e cacarejos, voando por cima do
corpo de Artujo, que se atolara na lama, e
refugiaram-se todas no outro lado da capoeira. Artujo levantou-se
desapontado e disse para os bichos: “Não foi nada, pronto, não
vos faço mal. Que tipas de medrosas são vocês. Venham cá, suas
bifas, tontinhas, desconfiadas, não me reconhecem? Sou Artujo, o
bonitão, quando não estou besuntado de lama. Olhem que sou
meiguinho, minhas safadas”, e aproximava-se, falando baixinho.
Ao
ver que as galinhas estavam mais calmas com as suas falas mansas,
Artujo atirou-se de novo, agora com mais determinação e confiança,
mas não apanhou nenhuma. As galinhas voaram em várias direcções,
todavia Artujo não esperou mais, agora era dar tudo por tudo. Mesmo
deitado por terra, Artujo estendeu um braço e prendeu pela pata uma
galinha que ainda voava. Ela torceu-se toda de surpresa, bicou
fortemente a mão suja de Artujo, mas ele resistiu fazendo caretas e
vociferou: “Não me atices ou será pior para ti!”
Artujo
levantou-se, foi para a casinha dos ovos, acocorou-se. O sangue
corria-lhe desalmadamente pelas fontes do cérebro. Pegou na galinha
pelas asas (o bicho já pouco resistia, era sempre aquilo todos os
dias), desviou-lhe as penas de trás e procurou o orifício
cor-de-rosa que todas as galinhas têm mais ou menos no mesmo sítio:
lá estava o sítio, pronto, aquilo nada tinha de mal, era só para
ver se tinha ovo. De qualquer maneira seria melhor ninguém
presenciar a cena. Poderia haver desconfianças, rumores.
Artujo
certificou-se do local exacto, do orifício preciso, não fosse
dar-se o caso de haverem outros semelhantes.
Enfiou
o dedo mindinho rapidamente no sítio, a galinha apertou, desapertou,
fazendo-o sentir cócegas no dedo. Era uma sensação agradável.
Artujo continuou, rodando o dedo dentro do
ânus da galinha, penetrando fundo em busca do ovo, mas o que ele
queria era sentir que tinha ali o dedo. A galinha estava com cara de
perguntar por que é que ele não ia meter o dedo no cu a outra e
talvez conjecturasse se Artujo não teria problemas de mulher ou se
porventura não se realizaria na forma como as possuía.
“Pois
é”, magicava Artujo. “As galinhas acabam sempre por aceitar a
realidade. Até gostam. Sentem prazer, já se vê. Que mal tem meter
o dedo no cu de uma galinha?”
Artujo
tinha o dedo completamente enfiado na válvula cor-de-rosa: apertar,
desapertar, um, dois, um, dois… dava ordens. A sensação era
melhor do que ele imaginara – se era – uma coisa assim só a de
Luana, apertar, desapertar, mansinha, as galinhas eram óptimas,
sensíveis, não protestavam, não forçavam até se fazerem caras no
momento de serem apanhadas, o que aumentava a excitação umas
quantas vezes. Quando se estava com uma galinha e se terminava o
serviço, terminava-se mesmo. As galinhas contentavam-se com qualquer
coisa. Zava era o contrário: queria sempre mais, sempre mais… o
que chateava à brava. Artujo não dava conta do desejo de Zava. Será
que Terrez também havia gostado de meter o dedo no cu das galinhas?
Artujo
retirou a cabeça de dentro da talha de barro. O contacto com o
crepúsculo fê-lo piscar os olhos por várias vezes e perguntar onde
estava.
Mas
via-se que não esperava resposta, nem esperava que alguém estivesse
ali no momento. Tropeçou numa das abóboras e segurou-se à
bicicleta enferrujada.
Artujo
estatelara-se ao comprido no chão, fazendo rebolar as abóboras e a
bicicleta pelo quarto. Mireu entrou no quarto, deslizando na sua
cadeira de rodas e perguntou irritado:
–
Que
fazes aqui, meu grande patife? – e acelerou violentamente as mãos
sobre as rodas metálicas da cadeira. Sem mais conversa, guiou a roda
esquerda na direcção do pescoço de Artujo, forçou a mão sobre a
roda, enquanto Artujo implorava:
–
Não,
não, Mireu, que é que eu fiz? Por que me odeias desta maneira?
Prometo que voltarei a pôr tudo no seu lugar.
Artujo
sentiu a pressão da roda sobre o pescoço, Mireu impedia-o de se
defender sufocando-o, estrangulando-o, cegando-o com os pés inchados
que exerciam uma força diabólica sobre a sua cabeça. Mireu
prolongava os segundos, continuando a rodar o lado esquerdo da
cadeira sobre o pescoço arroxeado e franzino de Artujo. A roda
começou a esmagar, comprimir, triturar, espremer a pele enrugada sob
o metal. Artujo vomitava sons desarticulados, esbugalhando os olhos
angustiados e a boca seca para Mireu, a língua rodando vagarosamente
como uma hélice depois de se lhe desligar o motor à procura de
saliva.
32
–
Isto
não pode continuar assim – disse Mireu para Arueta. – A nossa
relação está nas últimas. Não consigo deixar de pensar em Luana.
Vou dizer-te toda a verdade. Enviei a Luana uma mensagem escrita e
espero ansiosamente a sua resposta. Gosto muito de ti, Arueta, mas
não quero que te iludas pela nossa relação amorfa, sensaborona,
acomodada. Não vibro contigo de uma maneira total, não tenho
orgasmos fenomenais como tinha com Luana. Apesar disso, reconheço
que és uma verdadeira amiga, mas levo uma vida insatisfeita.
Procuro, procuro e espero não sei bem o quê. No fundo, nem tenho
esperança de reatar a relação com Luana. Só quero ser honesto
comigo próprio e, apesar de tudo, continuar à procura não sei de
quê. O problema é que me sinto mal. Sinto-me um jogador de
sentimentos, um calculista, um oportunista. Sei de antemão que nunca
hei-de atingir o que procuro. Sou um falhado, à partida. Quero
dizer-te tudo, mas não te quero magoar. Por que havemos de continuar
a enganar-nos? Estamos a ser prejudiciais um ao outro, estamos a cair
no erro de toda a gente, repugna-me uma situação em que não temos
coragem para enfrentar a realidade dos nossos traumas e desilusões.
Ou isto muda, ou acabo feito num trapo. Não chores, Arueta. A nossa
vida a dois tem sido um completo fracasso. Mas tu és a minha melhor
amiga. Confio em ti e é como amiga que te abro o meu coração.
Enoja-me continuar a usar a tua pessoa como se fosses uma estranha ou
vítima do meu ódio pela vida. Os nossos sentimentos não
correspondem. Estamos a alimentar uma situação de injustiça,
decadente, demasiado comum. Tentei tudo, Arueta. Assusta-me viver os
meus últimos dias no engano. Não consigo ultrapassar os pesadelos
do passado. O quarto das sombras tem estado aterradoramente presente
nestes dias de calor. Nada consegue dissimular os seus efeitos
devastadores nas nossas vidas. Vês como estou doente e fraco? Sou o
culpado de tudo o que aconteceu entre nós. Sou um inútil vencido
por fantasmas. Estou consciente de que a relação que mantemos
representa também uma atrofia para a tua vida, para o nosso
crescimento. Sinto remorsos de tudo. Remorsos pelo que fiz e pelo que
não fiz, pelo que penso e sinto e pelo que não penso e não consigo
sentir. Não sou uma pessoa saudável como as outras. Tenho
demasiados fardos às costas para te proporcionar uma existência
minimamente feliz. Estamos muito presos um ao outro. É o hábito de
há tanto tempo vivermos juntos. Sinto esta separação como uma
lâmina no meu cérebro a cortar, uma lâmina de navalha. Debato-me
com um dilema selvagem entre a estabilidade sexual e afectiva, mas
degradante, permanecendo contigo, e a procura constante de novas
formas de estar na vida e de novas pessoas e coisas. Não sei o que
está mais certo e mais errado, mas não quero recuar porque este
desejo de mudança permanente faz parte do meu ser e do meu estar.
Não consigo aceitar a ideia de viver numa casa, ter filhos, ver
televisão, encher o estômago de vinho ou cerveja e monotonia.
Assusta-me, a monotonia apavora-me. Tenho vivido estes anos contigo
sempre à procura de saídas para o impasse em que vivo, mas o
esforço tem sido em vão, o que me leva a concluir que não existem
alternativas para o nosso caso. Vendo bem as coisas, as pessoas vivem
suspensas umas das outras como as calças de uns suspensórios. Não
desisto da fome louca de coisas novas. Parar aqui e agora seria
antecipar a minha morte. O que tem estado a acontecer na cidade
poderia levar-me a suavizar esta luta interior, mas só veio
agudizá-la, mostrar-me as situações com mais clareza, e então
sinto uma vontade demoníaca de mudar tudo pela raiz, nem que seja
para ao menos ter um fim de vida que se ajuste à minha maneira de
ser. Nada consegui enquanto os pés não me haviam inchado e a
tempestade não tinha ainda mergulhado a cidade nesta cor horrível
dos dias. A maré pode ser a causadora do estado em que me encontro.
Sinto fogo dentro da cabeça e ouço ruídos estranhos pelos anos
fora. Estes são tempos pouco claros e sempre inquietos. Tenho como
tu saudades da escuridão, do negrume, da ventania. As coisas pararam
e empalideceram tudo à volta. Penso que a morte é já isto. Vês
como a morte está suspensa das janelas da nossa casa, onde
edificámos sonhos pueris e ideias rechonchudas como leitões e que
acabaram definhadas como borboletas tuberculosas? Não dá, Arueta,
não dá. É preciso matar a letargia em que mergulhámos sem darmos
por isso. Há outras coisas que temos de fazer e experimentar. Não
quero estar morto antes de morrer. As pessoas aceitam a morte com
demasiada naturalidade. Tudo isto é inútil. Nada do que estou para
aqui a dizer-te corresponde à verdade. Só tenho estado a inventar
razões, a arquitectar pretextos para a nossa separação, encobrindo
o verdadeiro motivo que me leva a tomar tal atitude. Receio tornar-me
ridículo, mas vou dizer-te a verdade e acabou-se. Serei verdadeiro
contigo desta vez, coisa que raramente fiz ao longo de todo o tempo
em que vivemos juntos: estou saturado de dormir numa cama com alguém
ao lado. É tão bom dormir sozinho e espernear à vontade entre os
lençóis. Todavia, não consigo adaptar-me à ideia de te ver dormir
noutra cama que não seja esta que partilhamos há tanto tempo. Por
isso, e como nada tem solução, o melhor que fazemos é separar-nos.
Deixa-me viver só entre quatro paredes nuas para à noite poder
imaginar quem eu queira dormindo a meu lado como um cacho de uvas
arrancado à planta de surpresa.
33
–
Deixa-me
falar, Mireu – replicou Arueta. – Estás a ser chocante
intencionalmente. Tenho procurado de todas as formas fazer-te mais
alegre, mas tens recusado o meu apoio. Dou-te carinho que tu repeles
a toda a hora. Procuro entender os teus traumas e pesadelos. Nunca te
revejo receptivo à minha postura. Sinto-me uma desastrada.
Conseguiste mudar a minha maneira de sentir a vida. Os raciocínios
destruíram as tuas emoções. Estás feito de pedra, granito,
celulóide. Buscas coisas que não existem. Tentas fugir de fantasmas
e atiras-te cegamente à procura de outros. Onde vais parar? Que
julgas poder encontrar através das tuas divagações mentais? Quando
te acaricio, beijo e me derreto em meiguices no teu corpo, tornas-te
rígido, ausente, como se a tua vida estivesse algures muito longe.
Não sinto o teu coração mudar de ritmo quando te dou ternura.
Luana é o teu mito. Não é uma pessoa. Nem sequer é uma mulher.
Luana não existe. Luana é a soma das coisas que não conseguiste
realizar. Desejas Luana porque não és capaz de te enfrentar a ti
mesmo. Não te consegues encontrar. Observas-te no espelho dos
cálculos frios e dos esquemas pérfidos. Não me dás qualquer
atenção. Para ti, tenho sido apenas o travesseiro a que te agarras.
Julgas que não tenho sentimentos? Julgas que sou indiferente à tua
rigidez mental e ao teu coração empedernido? Não sou uma mãe que
tudo suporta por saber que nos atirou para um mundo a que nunca
chegamos a adaptar-nos. Tu és o responsável por tudo isto. Desde
que passámos a viver juntos, moldaste-me à tua maneira de ser.
Indirectamente, exigiste-me coisas das quais na altura eu não
atingia a verdadeira dimensão. Foste um paternalista. E agora
destroças-me com a tua crueldade, abandonando-me no meio desta
cidade sem remédio. Atiras-me à violência e ao calor. Só pensas
em ti, Mireu. És um cobarde. Repugnas-me. Não te posso ver à minha
frente. Nas tuas mãos, nunca passei de uma reles prostituta. Como te
atreves a deixar-me sozinha neste mundo? Não me deixes, Mireu.
Amo-te. Farei tudo o que quiseres para não nos separarmos. Como tens
coragem de me abandonar assim nesta tempestade? Que mal te fiz eu?
Não posso acreditar naquele que dizes ser o verdadeiro motivo da
nossa separação. Os homens são uns frustrados, uns inconstantes,
uns bichos que nunca se satisfazem. São uma verdadeira doença.
Acorda, Mireu! Pões-te a dormir enquanto falo contigo? Atreves-te a
desprezar-me de forma tão descarada? Vejo muito bem que as minhas
palavras não te comovem. As minhas lágrimas nada te dizem. Pareces
uma estátua, Mireu. Uma estátua do tempo que só guarda rancores
dentro de si. Dizes que não gostas de mim, mas é de ti próprio que
não gostas. O ódio destrói-te. Há coisas que te massacram em
alguma parte do tempo, mas tu fazes recair todos os pesos sobre mim.
Nada tenho a ver com esta situação em que te debates para
sobreviver. Nada vais conseguir. Tornaste-te o único e verdadeiro
obstáculo a ti próprio. Puseste-te à frente de ti mesmo e assim
deixaste de poder andar sem tropeçar no teu cadáver. Por isso
escolheste a cadeira de rodas para te deslocar. Sou um mero elemento
decorativo neste curral onde vivemos. Sim, concordo. Devemos
separar-nos, quanto antes. Porque ninguém aguenta esta loucura. Não
faz sentido continuarmos juntos. Não faz sentido eu amar-te assim.
Que faço aqui? Vejo-te moribundo nessa cadeira de rodas. Estou farta
de ti, Mireu. Afinal, não te amo. Tenho a certeza de que não te
amo. Nem sequer sou tua amiga. Nunca cheguei a amar-te. Também tenho
estado a enganar-te. Para mim, sempre foste um escape para o amor que
nunca encontrei nas pessoas e que de início (só de início, nota
bem) conseguiste transmitir-me. Agora, sei que tudo foi um engano.
Nunca conseguiste preencher o meu coração, os meus íntimos desejos
e sonhos. Só na cama nos entendíamos. Mas há pouco até vieste com
aquela história que me confundiu completamente. A nossa separação
é inevitável. Mas é difícil levá-la avante. Estou mais ligada a
ti do que pensava. Ajuda-me a fazer as malas. Vou-me embora, antes
que sofra mais, antes que o mundo se desmorone. Não sei para onde
vou. Não conheço ninguém na cidade e mesmo assim quase toda a
gente deve ter morrido. Dá-me uma sugestão. Que devo fazer?
Mireu
não lhe deu resposta. Pôs-se a olhar o frigorífico com
insistência. Arueta foi lá, como se tivesse visto um aviso no olhar
dele. Abriu a porta do frigorífico e reparou que o olhar de Mireu
penetrava o corpo gelado na intimidade. Arueta meteu a cabeça no
frigorífico como um pinto sob a asa da galinha. O frio repentino
mostrou-lhe as ruas tristes por entre pequenos clarões que lhe
explodiam junto às pálpebras. A cidade afundada no esquecimento, no
terror dos cheiros, da agonia. Ah… lá estavam eles, os bilhetes
amarrotados que continham os últimos desejos dos habitantes da
cidade. Escondera-os ali para que Mireu não os lesse. Antes que se
esquecesse, guardou os bilhetes no bolso da saia verde, sem que ele
desse por nada. Logo a seguir, porém, viu um embrulho de papel
quadriculado junto à parede do fundo do frigorífico. Ainda antes de
lhe tocar, sentiu que algo ia acontecer. Assustou-se, ficou
pensativa. Mas desembrulhou o papel, sem se dar tempo de pensar no
que fazia e deu um grito, tirando a cabeça do frigorífico,
atabalhoadamente, com as mãos nos ouvidos. Havia um coração
enorme, um coração gelado, na prateleira. Alguém o pusera ali. Um
coração que parecia vivo, embora não pulsasse. Mas era como se
pulsasse mais que todos os corações. Um coração por entre postas
de sangue.
34
Ao
fundo do quarto das sombras estava o gato
eriçado sobre um móvel branco, entre os reflexos móveis, fixos,
ondulantes. Viam-se montes de algodão flutuando no vazio que ligava
as paredes lisas. Uma luminosidade irregular enchia o quarto,
causando zonas mais escuras, outras mais claras, e havia uma cama
acabada de fazer, como se estivesse à espera de um morto.
Olhando
para cima, via-se sempre branco, um branco intenso que crescia
afunilando gradualmente, até acabar num
ponto de luz muito viva, uma luz mais viva que o sol quando o fixamos
à saída de uma cela escura. Silécio corou ao ver o gato em cima do
móvel. Olhou-o como se reprovasse a presença dele no quarto das
sombras. Juntou um monte de terra. Encheu de água as mãos em concha
e sob a frescura dos montes de algodão vazou a água dentro de uma
cova que fizera no montículo de terra. Amassou tudo com os dedos que
ficaram da cor do café. Moldou seis bolas de terra amassadas com
água, alinhou-as à sua frente, esperou que secassem. Fixou o gato
e, lentamente, sem lhe tirar os olhos de cima, sacou da primeira bola
de terra. Humedeceu-a na água e atirou-a com revolta na direcção
do gato eriçado. O amigo de Luana ergueu-se surpreendido, vendo a
bola passar-lhe junto ao focinho e desfazer-se no vazio para lá do
móvel. Silécio apanhou a segunda bola e arremessou-a nervosamente.
Sem efeito. O gato eriçado deu uns passos sobre o móvel. Silécio
experimentou a terceira bola. Depois, a quarta, a quinta e a última.
E o gato continuava imperturbável, passeando para um lado e para o
outro sobre o móvel do quarto das sombras. Furioso, Silécio foi
apanhando coisas ao desbarato e atirando-as umas após outras contra
o gato. Esgotou tudo o que havia à mão. O bicho saltou do móvel.
Silécio
contraiu-se de medo, vendo o gato aproximar-se. Procurou fugir. O
gato impediu-lhe a saída, driblando-o e barrando a porta. Silécio
escondeu-se debaixo de um monte de algodão. O gato desatou em
miadelas que, ao contacto com o calor, tomavam a forma de novelos de
fumo esverdeado.
“Onde
está Luana?”, perguntou Silécio através de sinais de cabeça.
“Vou ler-te o bilhete que Mireu lhe escreveu”. Bateu três vezes
com o indicador na orelha. “Depois, vou-me embora”. Rodou a
cabeça e coçou-a.
Abanando
uma das patas repetidamente, porém, o gato parecia decidido
a não o deixar sair. Deu um pequeno salto, levantou o focinho e
agitou a cauda.
“É
preciso que Mireu e Luana não se encontrem”, gesticulou Silécio,
apontando dois dedos para baixo. “Se eu entregasse este bilhete a
Luana, poderia deitar o mundo a perder”. Tapou os ouvidos. “Seria
uma loucura”. Vendou os olhos com as mãos.
O
gato mantinha uma pata no ar, como se
tivesse a certeza de que dali não viria mal ao mundo e arrebitou as
orelhas três vezes.
“É
um bilhete com os últimos desejos de Mireu”, disse Silécio,
puxando o nariz duas vezes. “Esse homem está morto”. Encolher de
ombros. “Luana não pode correr o risco de fazer amor com um
cadáver”. Mãos entrelaçadas. “Seria uma desgraça para todos.
Uma calamidade irreparável para as gerações futuras”. Esfregou
uma mão na outra. “Entendes agora?” Bateu as mãos.
O
gato espetou os bigodes, ergueu as patas de
trás, depois as da frente e sentou-se. Mireu não podia estar morto.
A cadeira de rodas era apenas um disfarce.
“É
isso mesmo”, disse Silécio, colocando o indicador nos lábios. Era
o desespero da agonia, o calor, a tempestade da poeira e do
crepúsculo, o vazio do quarto. O pior era que se corria o risco de,
quando Luana encontrasse Mireu, não saber distinguir se ele estava
morto ou vivo. Silécio puxava os cantos dos olhos para os lados e
imitava os tremores do frio. Se assim acontecesse, Luana faria amor
com ele naturalmente e então seria uma tragédia. A morte tornara-se
irreconhecível. Luana cairia na armadilha. Para o bem de todos, era
imperioso impedir aquela ligação. Decidiu rasgar o bilhete. Era o
melhor que tinha a fazer. Ninguém saberia de nada. Para isso,
contudo, sentia-se na obrigação de resolver o problema do gato de
uma vez por todas. Silécio avançou para o animal, agarrou-o pela
cauda, girou com toda a força como um pião sobre si próprio e fez
o bicho rodopiar por entre as sombras móveis e fixas como as velas
de um moinho numa manhã ventosa.
“Agora,
sim”, disse Silécio para si mesmo, vendo o gato espernear e miar
em direcção ao abismo, desconjuntando-se nas sombras.
35
Não
se sabe quanto tempo passara ao certo depois da separação de Arueta
e Mireu. Mas passara tempo. Os dias continuavam teimosos da cor do
chocolate. O crepúsculo estacionara na berma da estrada como um
velho automóvel cansado de fazer viagens. Ao aproximar-se da colina,
o Sol detivera-se. Nem para cá, nem para lá. A cidade parecia um
mundo a que de repente tivesse faltado a gasolina. Há muito que o
pulsar do tempo esmorecera, se evaporara.
No
pátio, estava como sempre o automóvel amarelo, alaranjado de
velhice, salpicado de manchas prateadas, como se algumas estrelas se
tivessem estampado nele, delicadamente. Agora, nada de moscas, nem
rãs, nem charcos minúsculos que o calor arrastara para espaços
vazios no infinito.
A
casa estava como se assentada no fundo dos mares. Sem ruídos, nem
movimentos. Mireu passava os dias na cadeira de rodas, por detrás da
janela, em sonolência quase ininterrupta. Nas poucas vezes que abria
os olhos, fechava-os logo a seguir com medo da solidão que o
rodeava.
Certa
vez, ouviu-se na casa um grande estrondo, seguido de respirações
apressadas e vidros partidos. Mireu
despertou sobressaltado e olhou instintivamente para a janela, onde
se via uma figura acabada de recortar na vidraça empoeirada. Mireu
viu à sua frente Luana. Luana impávida.
Não
se sabe quanto tempo passou nesse instante. Mas passou tempo. Nada e
ninguém mexia, como se a súbita aparição paralisasse, gelasse os
corpos intimamente em chamas. Luana tinha
grãos de vidro por entre os cabelos negros, como se aquela fosse a
origem das estrelas e das lágrimas. E via-se-lhe ainda um ligeiro
arranhão no nariz pela travessia da vidraça.
Mireu
parecia um boneco de neve, com os dilatados como duas maçãs
vermelhas. Ao abrir a boca, a sua face enrugou-se e fez o som das
folhas de papel quando se amarrotam. Então, Mireu lançou um medonho
uivo que fez tremer a casa toda, desprendendo tinta das paredes. Ao
mesmo tempo, agarrou violentamente as rodas da cadeira em que estava
sentado, destravou-as, rodou-as, largou porta fora como um meteoro,
sobrevoou os cinco degraus da escada de madeira, atravessou o pátio
e daí a nada estava na avenida principal da cidade, acelerando como
se tivesse visto uma alma do outro mundo. Meteu por ruas pequenas e
travessas, galgando os cheiros a galinhas assadas nos esgotos, o
lixo, os carros abandonados, as janelas desengonçadas, os vidros
empoeirados, as casas surpreendidas olhando os dias eternamente
parados. As ruas que se cruzavam, prolongavam, se encontravam nas
esquinas da agonia.
A
certa altura, Mireu viu qualquer coisa e
parou. Era uma mulher morta com a cabeça metida num esgoto e a saia
verde aberta sobre o asfalto. Saltou da cadeira, agarrou-se ao corpo
e disse em altos berros:
–
Por
que fizeste isto, Arueta? Para quê tanto desespero? Espera, Arueta,
espera, que nem tudo está perdido ainda. Olha-me Arueta. Beija-me,
para que os teus lábios quentes me consolem esta agonia. Não te
faças tola, Arueta. Preciso da tua saia. Vou levá-la. Já a trago
de volta.
Mireu
despiu Arueta da saia, rebuscou nos bolsos, encontrou os bilhetes com
os últimos desejos, leu-os um por um, tornando-se mais pálido do
que a palidez. Sentou-se de novo na cadeira de rodas, pô-la em
andamento com as mãos trémulas, enfiou na cabeça a saia verde de
Arueta e foi deslizando pela rua que ia dar ao areal, enquanto
repetia mecanicamente:
–
Nícora,
Zava também… Nícora, Zava também…
A
cadeira acelerou desesperadamente pela descida da rua que dava para o
mar. Indiferente ao perigo, Mireu repetia:
–
Nícora,
Zava também… bolas, bolas… – Nícora, Zava também… com o
rosto escondido dentro da saia verde de Arueta como aqueles tipos do
poço da morte que vendam os olhos e abrem os braços nas motos
rodando sobre os muros redondos da vertigem.
As
lágrimas de Mireu molhavam a saia verde e o calor secava-as logo.
–
Adeus,
adeus – dizia Mireu, acenando com as duas mãos na direcção do
vazio abafado e quente.
Mireu
atingiu o areal de cabeça coberta, como um carrasco que se apresta a
deixar cair a lâmina sobre o próprio pescoço. A cadeira de rodas
atingiu o areal com a velocidade do som, derrapou em restos de óleo
e limos e Mireu compreendeu que tudo terminava ali. Travou a custo a
cadeira sobre a última aresta do caminho, tirou a saia verde do
rosto e olhou o mar para além do areal. As ondas frágeis, moles,
indecisas, bolhas de óleo como pequenas lagoas de prata, esperando
pasmadas, boquiabertas, que o calor se fosse, sumisse para lá dos
dias de poeira.
Mireu
avançou sobre a areia e atirou ao mar a sai verde de Arueta,
deixando-a a boiar por entre o óleo e as ondas como a cabeleira
abandonada de uma qualquer sereia.
Verde,
a saia verde foi sugando, sugando o mar doente e cansado. Mireu
esperava ansioso. Fixava a saia como se dela se pudesse esperar um
milagre e dizia:
–
Vai,
vai… beija-me… beija-me… Olhem todos, olhem, não vêem?
O
seu rosto começou a recuperar alguma cor e era agora uma mistura
visível de alegria e dor. O verde da saia foi escurecendo, tomando a
cor dos subterrâneos, bebendo mar, óleo, ondas frágeis sem espuma.
Mireu
deu um pulo e disse:
–
Já
está! Já está! Vêem como resultou? Não vos dizia? – E desatou
a correr pelo areal e depois pela rua acima, batendo palmas ruidosas,
gritando, falando com tudo o que encontrava no caminho.
Entrou
em casa a assobiar, viu Artujo na cama com Luana e disse:
–
Vou
só lavar os dentes e volto já.
Mireu
lavou os dentes, voltou, viu Artujo à rasca, sem saber o que fazer
ou onde se meter. Tinha ao pescoço um lenço vermelho como os dos
cow-boys. Artujo procurou articular algumas palavras que não lhe
chegaram a sair da boca assustada. Tentou abrir a porta do quarto das
sombras, mas reparou que estava trancada. Trancada para sempre.
Cercado
por todos os lados, Artujo optou pela saída
que era menos de prever: deu um salto dentro do quarto, fixou Mireu
no fundo dos olhos, imaginou-se do tamanho de uma mosca e saiu porta
fora, ajeitando o lenço vermelho e dizendo adeus a Luana, dizendo
adeus com as duas mãos, que pareciam dois pêndulos desencontrados
nas horas.
Logo
a seguir ao vazio criado pelo desaparecimento de Artujo,
Luana quebrou o encanto embaraçoso do momento e disse para Mireu:
–
Vem
refrescar o meu corpo. E ele foi.
No
areal, a maré continuava a vazar para dentro da saia de Arueta. A
espuma brilhava na crista das ondas. O cheiro a galinhas assadas nos
esgotos foi-se esfumando aos poucos. Ouviu-se o motor de alguns
carros em andamento. Uma aragem suave envolveu a cidade e depois
vieram rajadas mais fortes de vento que limparam a poeira das
vidraças e afastaram de uma vez as nuvens de chumbo que se
amontoavam sobre as casas.
O
sol abriu a bocarra de sono e deslizou pelo céu abaixo por uma corda
invisível, como um acrobata prenhe de forças, terminando o seu
número entre aplausos.
Como
no fim de um pesadelo, a noite caiu sobre a
cidade. Quem fosse à janela naquele exacto momento teria a nítida
sensação de testemunhar o princípio das coisas e do mundo, depois
do calor e da poeira.
Mais
tarde, bastante mais tarde, Luana apareceu
com uma grande barriga. “O ventre…”, pensou Mireu. “O estado
do ventre”. Lembrava-se de ter visto aquilo em qualquer lado do
tempo. Ele, ou alguém por ele, talvez Artujo, espetara-lhe o dedo na
barriga e perguntara qualquer coisa. Uma risada havia sido a
resposta. A doença, os pés inchados, o olhar da cor das marés
cheias. Mas aquela era Luana, inchada, de barriga cheia, como quem
está doente. E se Luana morresse? Ela esteve assim de ventre enorme
durante meses. Mireu contou-os meticulosamente. Contou os dias em
silêncio. As horas, os domingos.
A
partir do oitavo mês, o ventre de Luana deu indícios de começar a
encolher. Mireu redobrou a sua curiosidade e atenção pela vida. O
inchaço do ventre de Luana ia sumindo a olhos claros. Ao mesmo
tempo, havia pormenores em Luana que iam mudando, também. Os seus
olhos, que antes eram negros, estavam agora quase azuis. A sua pele
estava inexplicavelmente bronzeada, o cabelo clareava dia após dia,
a voz tornou-se rouca, sensual.
Mireu
pôs a hipótese de Luana se ter transformado em outra mulher. O
comportamento dela alterara-se bastante. E o feitio não era o mesmo.
Deixara de o aborrecer com futilidades.
Um
dia, Mireu chamou Luana. Mas em vez de dizer “Luana”, disse
“Viviana”. Como ninguém lhe respondeu, chamou mais uma vez. Na
sua ideia, disse “Luana”, mas o que se ouviu foi “Viviana”.
Ao
fim de uns minutos, surgiu Luana, surpreendida. Olhou em redor.
Sorriu. E perguntou-lhe quem era Viviana…
–
Viviana?...
Eu disse “Viviana”? – perguntou ele, em voz baixa, intrigado
com o som das sílabas que aquele nome desconhecido lhe trazia aos
ouvidos.
Depois,
houve um silêncio, que Mireu aproveitou para respirar, engolir
saliva, contrair o nó de Adão, corar.
–
Não
sei onde tenho a cabeça – disse, por fim. – Desculpa. Foi
confusão minha. E após uns segundos de reflexão, perguntou: –
Mas eu disse mesmo “Viviana”? Tens a certeza? Não pode ser. Não
conheço ninguém com esse nome…
–
Está
a fazer-se tarde – disse Luana, mudando de assunto, e desviando o
cabelo do rosto. – Vou dar uma volta.
Quando
caminhava para a porta de saída, tirou do bolso da saia um pedaço
de papel, rabiscou nele qualquer coisa, assinou, abriu a porta e, ao
fechá-la, teve o cuidado do deixar o bilhete entalado na fresta por
onde Mireu desaparecia naquele instante.
FIM